terça-feira, 22 de março de 2011



22 de março de 2011 | N° 16647e
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Da arte de viajar

Solidamente ancorado em Porto Alegre por mais tempo do que julgo merecer, repasso na memória viagens que fiz em melhores épocas. A melhor de todas foi como um trecho de céu azul inaugurado sem aviso em meio a uma tormenta de inverno.

Em um telefonema, o adido de Imprensa da Embaixada da Alemanha perguntava se eu estava disposto a estudar Jornalismo Avançado por alguns meses em Berlim. Eu estava. Só lhe indaguei: quando embarco? Ao que ele esclareceu: ontem, se possível. Acabei chegando menos de uma semana depois, praticamente em cima do início das aulas e de um dos mais belos e fascinantes períodos de minha vida.

Não foi a única intimação do gênero. Voltei várias vezes a uma cidade então dividida contra si mesma, tornei a reencontrá-la depois da queda do Muro, percorri os Estados Unidos de Costa a Costa e de Norte a Sul, com direito a uma esticada no Canadá, andei pela França, a Inglaterra, a Espanha, a Bélgica, o Báltico, o Pacífico de norte a sul, a Áustria, a Suíça, a Itália, as ilhas gregas e a Turquia, a bordo de gentis convites que pousavam em minha sorte praticamente às vésperas da partida.

Não foi diverso nas incursões acima e abaixo da linha do Equador bancadas por minha própria conta e risco: sempre me decidi por impulso, o combustível perfeito para vencer largas milhagens.

Conheço pessoas que planejam demoradamente suas decolagens para terras distantes. Ouso supor no entanto que minhas experiências são mais intensas. Segundo uma receita que observo há bem mais de 30 anos, no primeiro dia de uma viagem interpreto o papel do turista clássico: empreendo um city tour. É o momento em que elejo cinco ou seis lugares que me falaram direto ao coração ou à fantasia.

Todo o mais é acidental. É o andar ao acaso, sem compromisso nem hora, como se fosse um homem perdido na multidão. Foi assim que descobri em Paris um quiosque dotado de sucessivas camadas que imergiam até uma adega do século 13; a verdadeira gruta em que São João escreveu o Apocalipse, em Patmos; o pub londrino em que um tal de William Shakespeare empurrava umas que outras.

Nada contra os que armam uma viagem como quem desvenda um teorema. Já eu acho que a verdadeira sedução, em longínquas latitudes, é o encontro com o inesperado.

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