quarta-feira, 23 de março de 2011



23 de março de 2011 | N° 16648
PAULO SANT’ANA | HUMBERTO TREZZI - INTERINO


Onde tudo é relativo... ou não

Os misteriosos desígnios de Deus (ou Alá, ou Jeová...) parecem ainda mais indecifráveis quando se está no Oriente Médio. Pensei nisso ao pisar naquela região desértica, bela e um tanto surreal – para os padrões ocidentais – quando designado por Zero Hora para cobrir a guerra civil na Líbia.

Meu debut no mundo árabe confirmou aquilo que já tinha ouvido falar e que já intuía desde o primeiro instante. É uma parte do planeta em que pode se chegar a uma linha reta por meios tortos, onde o certo pode ser duvidoso, onde o compromisso tem muitas faces e onde a negociação, mais do que uma prática, é parte da alma popular.

Taxímetro, por exemplo: não encontrei. Combina-se o preço de qualquer trajeto, de um a 800 quilômetros, na hora de embarcar. E tudo depende do motorista. O mesmo percurso de 300 quilômetros pode custar US$ 100 ou US$ 200, varia de acordo como o cliente está vestido, o quanto ele sabe de árabe (inglês não vale), se é brasileiro (aí o preço é reduzido), enfim... Tudo é relativo (ou não).

No Cairo, aproveitei para visitar as pirâmides. O hotel me disse que conseguiria um guia. No dia seguinte, apareceram dois Ahmed, um motorista e o outro guia. O hotel ficou com uma parte do dinheiro, eles com a outra. Na chegada aos imponentes e milenares túmulos dos faraós, o Ahmed-mor me deu umas explicações básicas, saiu de perto e retornou com um terceiro sujeito, que puxava um camelo pela mão. “Este é o seu guia, Ali”, explicou.

– Mas eu já te contratei como guia... – ponderei.

– Não, não... eu sou o guia histórico. Ele é o guia turístico, que vai te conduzir em meio às pirâmides.

OK, paciência. Ali disse estar no Egito para servir-me etc etc.Quando fui subir no camelo, Ali me apresentou um menino, Tarik. Era o quarto guia do dia, esse, sim, encarregado de puxar o animal pela rédea, enquanto Ali nos seguia num cavalo.

O guri, claro, ia a pé pelas dunas, já que era o último no ranking de status social e experiência entre os cicerones selecionados para me introduzir nos mistérios do Egito antigo. Meu dinheiro foi partilhado de acordo, uns ficando com a parte do leão, o menino com verba apenas para a comida.

Na terra da barganha, as negociações se estenderam na compra de um Kafieh (manto árabe usado para proteger a cabeça), que começaram em 120 libras egípcias e culminaram num preço de 20; no aluguel de carros (um sorriso podendo reduzir em US$ 50 o preço); na contratação do motorista poliglota, que ao final se mostrou monoglota, o que acabou reduzindo o custo.Em nenhum momento tive medo de ser roubado ou sequer furtado. Não é essa a questão. O que chama a atenção é a delonga, o ardil no negócio.

A essas alturas já tinha percebido que os contratos podem ser alterados sem nenhum sinal de hesitação, sem o mínimo sentimento vexatório. Fiquei com a nítida impressão de que tudo nessa parte do planeta enseja espaço para o linguajar oblíquo, sinuoso, com margem para novas e variadas interpretações, de tal forma que ao final se fica com a impressão de que tudo não passou de um mal-entendido. Mesmo quando estava tudo bem acertado no início.

Não me surpreendi, portanto, quando Kadafi anunciou a tomada de Tobruk das mãos dos rebeldes e no mesmo dia passei por esta cidade, em mãos de rebeldes. Ou quando a Liga Árabe criticou os bombardeios da coalizão internacional contra Kadafi, um dia após autorizar os tais bombardeios. Agora entendo. É tudo uma questão de interpretação.

Pena que essa sinuosidade possa levar a efeitos colaterais, como uma bomba a mais, centenas de vidas a menos e negociações de paz infindáveis. Talvez eu precise de alguns milhares de anos de história, daquela História tão presente no Oriente Médio, para me acostumar. Talvez..

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