sexta-feira, 25 de março de 2011



25 de março de 2011 | N° 16650
DAVID COIMBRA


Ficha limpa: o projeto da raça superior

O projeto ficha limpa, ora em candente discussão, diz muito sobre o caráter do brasileiro. Décadas atrás, o brasileiro mais famoso de todos os tempos, Pelé, afirmou que seus conterrâneos não sabiam votar. O espírito do projeto ficha limpa é exatamente esse. Um milhão e trezentos mil brasileiros concluíram que Pelé estava certo, reuniram-se em petição e imploraram que parte de seus direitos políticos fosse suprimida.

E aí estão as primeiras informações que o ficha limpa fornece sobre o povo brasileiro: o seu desprendimento e a sua humildade. Porque, com o ficha limpa, o brasileiro reconhece sua incapacidade, o brasileiro admite sua estupidez: eu não sei votar, ele diz. E então ele luta para perder algumas de suas prerrogativas. É como se gritasse: “Eu não quero poder votar nesse candidato! Proíbam-me, por favor!”

Ah, é evidente: o brasileiro que pede o ficha limpa não está pensando no seu próprio voto. Ele sabe que é um eleitor superior, que seu voto vale mais. Uma espécie de raça pura da política, em contradição com a sub-raça nacional, a plebe ignara que elege políticos fichas-sujas.

Assim, os eleitores que participaram do abaixo-assinado do ficha limpa estão, na verdade, subtraindo os direitos dos eleitores que eles, fichas-limpas raça superior, julgam inferiores. Com o que temos mais uma informação sobre o caráter do brasileiro: ele acredita no poder depurativo das elites.

Estou sabendo, e você também sabe, que o eleitor raça superior despreza os eleitores inferiores que votaram no Tiririca. Por coincidência, o número de um e de outro é mais ou menos o mesmo: são 1,3 milhão os inferiores que elegeram o Tiririca. Talvez os eleitores superiores devessem pensar em outro projeto para reprimir os inferiores-Tiriricas. Algo contra candidatos que usem nariz falso, por exemplo.

Há mais: o ficha limpa, curiosamente, revela que o brasileiro confia na Justiça e desconfia dela ao mesmo tempo. Porque, pela proposta, o eleitor raça superior transfere a responsabilidade de escolha de seus representantes, que era dele mesmo, para a Justiça: afinal, o candidato que for condenado em segunda instância ou por um colegiado de juízes estará impedido de concorrer.

Mas o eleitor raça superior, que entre nas mãos da Justiça seus direitos políticos, não permite que a Justiça siga seu curso. Ele proíbe a candidatura do suposto ficha-suja antes do julgamento da última instância. Quer dizer: por pressa ou por suspeitar da decisão da instância superior, o eleitor raça superior atropela o andamento da Justiça.

Se for para apressar a coisa, tenho uma sugestão: que tal proibir a candidatura de qualquer pessoa que tenha sido acusada de qualquer coisa? Levou multa de trânsito? Atrasou o aluguel? Não pode concorrer.

Eu mesmo, tempos atrás, fui condenado por um colegiado. Tornar-me-ia inelegível. Minha mãe ficaria chateada, porque acho que minha mãe votaria em mim. O que me faz pensar: será que minha mãe é uma eleitora inferior?

É assim: o projeto ficha limpa, tão bem-intencionado, faz com que eu duvide até da mãe.

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