terça-feira, 15 de março de 2011



15 de março de 2011 | N° 16640
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Luz de março

E de repente o ar da manhã de verão é rasgado pelos sinos da Catedral. Convivo há tantos anos com sua música que não deveria mais me impressionar com ela. E contudo me surpreeendo em cada nota, como se fosse a primeira vez que a ouvisse.

O sino chama para a missa em meio à luz de março, e eu fico imaginando que pessoas atendem ao seu chamado. O pecador que vai se aliviar de suas culpas no confessionário? A menina que se prepara para a primeira comunhão? A dama que participa da cerimônia apenas porque este é o seu hábito?

Conheci a Catedral quando menino. Não estava ainda completa. As paredes eram expostas por tijolos rústicos. Não havia ainda as tumbas de bispos e arcebispos. No lugar onde hoje está a cúpula, uma cobertura branca e provisória atraía pássaros – e sua música se confundia com a do coral.

Outra lembrança inesquecível é a das solenidades da Semana Santa. A liturgia era cantada em latim – o bom e velho latim que eu aprendia no Colégio Anchieta. Mas havia algo mais do que um idioma. Havia o aroma do incenso, a litania entoada a capricho, o diálogo sagrado que se estabelecia entre os cantores.

Singularmente, no entanto, a maior sensação de paz que eu vivia, na missa de domingo das 9h, a minha preferida, era a da tranquilidade emanada do dever cumprido. Era obrigatório ir à missa? Era. Era se provável participar dos cantos e orações coletivos? Era. E tudo isso me transmitia um sentimento de serenidade e de dever cumprido que não tinha preço.

Não pensem que eu não me distraía com as comemorações eventuais. Não creiam que não me chamava a atenção um palminho de rosto bonito. Não acreditem que eu me postasse alheio a um belo corpo de mulher.

Mas tudo isso fazia parte do espetáculo – a ópera sagrada que se desenrolava à minha frente. Era uma ópera, com seus rituais e seus dogmas – e era preciso apreciá-la com unção.

Hoje já não vou à missa. O fim do rito latino subjugou minha fé. Como disse um filósofo, foi como se revestissem de fórmica a Catedral de Chartres. Mas não esqueço da época em que a Catedral de Porto Alegre era como a luz de março.

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