sexta-feira, 11 de março de 2011



11 de março de 2011 | N° 16636
DAVID COIMBRA


O gaúcho e o brasileiro

Enquanto você se perdia nos Folguedos de Momo e se acabava no ziriguidum, eu, modesto, recolhi-me a uma estância no interior profundo do Rio Grande. E no momento em que lá me vi, onde a internet e a telefonia celular não me alcançavam, onde os motores não roncavam, mas a coruja piava, o boi mugia e os passarinhos trinavam, naquele momento constatei que... não havia mais livros para ler.

Não havia mais livros para ler!

É que ultimamente, tenho sido como o Mario Henrique Simonsen. Nos anos 70, o Simonsen, gênio da economia, foi abordado por um repórter que lhe perguntou sua opinião sobre o Plano Nacional de Desenvolvimento, lançado pelo governo. Ele:

– Não leio ficção.

Também eu reduzi minha cota de ficção. Então, durante o Tríduo Momesco decidi dar uma folga ao cérebro e escolhi três romances para levar comigo. Mas, ao abrir a mala, surpresa: dois já tinha lido! Eram de autores que já li muito, o Ed MacBain e o Doctorow. Donde, a confusão.

E o terceiro era um nadinha de 150 páginas, consumi-o em um dia. E agora? Já estava pensando em ler a lista telefônica, quando o dono da estância me pôs em frente a um grande armário, abriu-o de par em par e anunciou:

– Os livros do meu pai.

Foi lindo. Entre joias tantas, deparei com um volume que há tempos buscava, por indicação do Moisés Mendes: as memórias de João Neves da Fontoura. Poucos sabem que Neves da Fontoura foi o principal articulador da revolução de 30, fato reconhecido inclusive por Getúlio Vargas, que o queria presidente em 1945, e não Dutra. Mas, além de ser político influente, Neves da Fontoura escrevia com brilho e fluidez.

Esse livro, de 1957, não tem nada do beletrismo da época. É repleto de histórias contadas com inteligência. Ele escreve a partir do Rio. E, como se falasse com um leitor carioca, descreve seu Rio Grande natal. A folhas tantas, tenta explicar os motivos de o gaúcho ser tão diferente dos brasileiros.

Fala da insularidade do Rio Grande e de seu isolamento. Lembra que houve só um rio-grandense de importância no ministério de Dom Pedro II: o general Osório. Um dia, esse Osório despachava com o imperador, que, já entrado em anos, cochilou no meio da conversa. Osório se irritou: desapresilhou a espada e deixou-a cair no chão, com grande estrondo. Dom Pedro acordou, piscou e tocou a audiência. Mas logo adiante pegou no sono de novo. Ao que Osório, mais uma vez, soltou a espada, assustando sua alteza.

– No Paraguai ninguém deixava a espada cair – resmungou o imperador.

Osório rebateu: – É. Mas lá ninguém dormia.

Bela história. Hoje, nem um Neves da Fontoura seria capaz de contá-la. Porque hoje não há o que falar sobre as diferenças entre o gaúcho e o brasileiro. Elas não existem mais. O gaúcho e o brasileiro são o mesmo povo, movido pelo mesmo moralismo, pela mesma platitude de pensamento. Somos todos iguais. Da última quadra de campo à esquina mais luminosa da cidade.

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