quarta-feira, 16 de março de 2011



16 de março de 2011 | N° 16641
PAULO SANT’ANA


Comendo com culpa

Eu tenho uma filha que é vegetariana. Ela ama os animais e não tolera a hipótese de que, consumindo carne de gado, possa contribuir para o sacrifício com dor dos animais.

Por isso é que, quando como uma picanha, confesso que o faço com dose de grande culpa.

E a minha culpa reside em um só ponto: acontece que os defensores do sacrifício em massa do gado e dos galináceos afirmam que esses dois tipos de animais foram feitos para a alimentação humana.

Pois bem, mas será que a alimentação humana não tinha de se restringir ao leite das vacas e aos ovos das galinhas, sem a necessidade de que os bois e os frangos fossem dizimados nos matadouros para que o homem se delicie com suas carnes?

Esta é que é a questão.

Bem, mas então eu como carne de gado e de galinha por uma razão cultural: desde criança meus pais me habituaram a comer bifes e pernas de galinhas.

Mas eu fumo também por uma razão cultural: quando comecei a fumar, todos os artistas de cinema fumavam na tela, e até eu, mais tarde, durante muitos anos, fumei durante meus comentários na televisão.

No entanto, é facultado a mim parar de fumar, como tanta gente o tem feito nos últimos tempos.

Sendo assim, eu poderia também parar de comer gado e galinha.

Se posso parar de fumar em respeito à minha saúde (e em respeito à saúde dos outros, uma vez que dizem que os fumantes passivos são prejudicados pela fumaça), posso também deixar de comer carne em respeito aos animais, evitando de me tornar responsável pelos sacrifícios cruentos dos bois e dos frangos.

O fato é que ainda não tive a coragem moral e física de deixar de fumar e de deixar de comer carne.

Exercito esses dois prazeres com culpa. E prazer com culpa é prazer de alguma forma menor.

Na serra gaúcha, existem alguns agrupamentos de colonos que cultivam à mesa um prato delicioso para eles: a passarinhada.

Não querem nem saber se as aves que abatem nas árvores ou em armadilhas são destinadas pela natureza para cantar ou para extasiar os homens diante do colorido de suas penugens.

Eles querem é sentar à mesa diante de grandes panelas de passarinhadas.

Eu jamais comeria passarinhos. Com pena dos passarinhos.

Mas como é que não tenho pena dos galetos? Como é que não tenho pena dos bezerros e dos borregos e sento à mesa e mergulho em afrodisíacos assados e risotos?

E como é que nunca entra nessa discussão do sacrifício dos animais o peixe?

Existe morte mais cruenta que a do peixe, com o fim de alimentar o homem? Ele é fisgado excruciantemente por um anzol ou asfixiado numa rede.

Por que é que os defensores dos animais se esqueceram em sua luta ecológica dos peixes? Será por que Jesus comia peixes multiplicados com seus apóstolos à beira do Jordão?

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