TRAGÉDIA
NO SUL
Operação
aplica técnicas médicas usadas no Iraque
Especialistas
internacionais discutem por videoconferência como tratar feridos
No
cenário de terror que se viu nos hospitais de Santa Maria no domingo passado,
aplicaram-se técnicas aperfeiçoadas nos hospitais militares do Iraque durante a
ocupação americana.
"Houve
muitos casos de paradas cardiorrespiratórias, com a necessidade de reanimação.
Situação de guerra, já esperada. Mas o mais assustador eram os pacientes que
entravam falando e de repente afundavam em coma, em um quadro de insuficiência
respiratória. O jeito foi sedar e entubar antes que o organismo parasse. Essa
velocidade de resposta salvou a vida de muitos desses guris."
O
depoimento é do médico Neio Lucio Fraga Pereira, 58, sobre o atendimento às
vítimas da boate Kiss.
Membro
da Força Nacional do SUS, espécie de tropa de elite formada há um ano por
profissionais de saúde de todo o país para atuar em casos de tragédias e
epidemias, Pereira era um dos participantes das videoconferências que se
realizavam diariamente, unindo especialistas internacionais aos médicos dos
hospitais de Santa Maria. O objetivo: discutir caso a caso o tratamento dos
feridos.
Eram
médicos dos melhores hospitais brasileiros, das universidades da Califórnia e
de Toronto (Canadá) e do hospital militar de Basra (Iraque), onde o
conhecimento sobre tratamento de queimados tornou-se imperativo, em decorrência
dos ataques incendiários aos poços de petróleo, durante a ocupação americana
(2003-2011).
PICHE
NOS PULMÕES
"Estamos
tendo de aprender a tratar feridos de guerra para lidar com os efeitos da mais
pura negligência", protestou Elena Mussanari, 38, professora, após
depositar flores na frente da boate em homenagem às vítimas.
"Foi
como se tirássemos piche de dentro dos pulmões dos meninos", descreveu uma
enfermeira do Hospital de Caridade, em Santa Maria, contando o que via quando,
pelos menos duas vezes por dia, fazia uma espécie de faxina nos brônquios dos
feridos. "A gente injetava soro e aspirava a fuligem -quanta fuligem!- ali
depositada, que saía com o muco produzido no processo infeccioso. Nunca tinha
visto nada igual."
Havia
ainda a intoxicação por cianeto, decorrente da queima de uma manta barata de
espuma, usada pelos donos da Kiss para reforçar o isolamento acústico.
Segundo
Paulo de Tarso Monteiro Abrahão, coordenador de Urgência e Emergência do
Ministério da Saúde, 80 horas após serem salvos, havia pacientes com níveis de
cianeto no sangue em concentrações insuportáveis para humanos (o cianeto é o
princípio ativo do gás Zyklon B, usado nas câmaras de extermínio nazistas
durante a Segunda Guerra Mundial).
A
tragédia da boate Kiss incluiu outro aprendizado extraído das guerras, embora
muito mais sutil e silencioso -como lidar com o luto pela morte em massa de
jovens com a vida pela frente.
Chamada
em Brasília, onde mora, para atuar no socorro à saúde mental dos parentes e
amigos das vítimas, a psicóloga sanitarista Débora Noal, dos Médicos Sem
Fronteiras, é uma das principais idealizadoras da estratégia.
Começou
com psicólogos (130 na linha de frente, mais 200 em uma lista espera)
acompanhando cada velório e enterro, como forma de monitorar as pessoas mais
fragilizadas pelas perdas.
ÂNIMO
PERDIDO
Santa
Maria nesta época do ano é quase sempre muito quente. Bem no coração geográfico
do Rio Grande do Sul, passou a semana imediatamente posterior ao incêndio
cozinhando nos 36ºC à sombra, sensação térmica nos 40ºC, sem ventos nem alívio.
As
charretes que ainda se veem pelas ruas eram puxadas por cavalos empapados em
suor, respiração ofegante. A tragédia piorou a sensação de sufocamento.
Nas
ruas do centro, transeuntes choravam sozinhos. Como o músico Alex, 25 amigos a
menos na vida, que lamentava porque os que lhe restaram, todos também músicos,
começavam a reclamar que não conseguiriam mais trabalhar na cidade. "Sou
eu que estou vendo errado ou eles só estão preocupados com o seu
bem-estar?"
"Estou
pensando em sair da cidade, e tenho amigas com o mesmo sentimento", diz a
publicitária Bibiana Fantinel, 25, criada ali.
A
dúvida sobre o futuro vem de sensação quase unânime: Santa Maria ficará
marcada. O ânimo parece perdido. As festas estão suspensas e ninguém imagina
quando voltarão (a cidade possui 40 mil alunos entre o fim do ensino médio e a
universidade).
Até
as cidades próximas se abateram, e os bares estão fechando mais cedo, diz Pablo
Bizzi, 20, estudante de ciência da computação na UFSM (Universidade Federal de
Santa Maria), que perdeu dez amigos no incêndio.
Na
sexta-feira, pelo menos dez voluntários espremiam-se no serviço de atendimento
psicológico Caminhos do Sol, instalado no casarão próximo ao centro da cidade.
Um
ventilador (não adiantava nada) era a testemunha da visita de 20 pessoas que
para lá foram em busca de socorro para lidar com o luto. Do lado de fora,
porque a imprensa -gentilmente- foi convidada a sumir, ouviam-se soluços baixos
e sussurros.
Segundo
Débora, do primeiro ao terceiro mês pós-desastre, os serviços de saúde mental
de Santa Maria deverão se manter em estado de atenção. Um foi montado na
Universidade Federal, onde estudavam 114 dos 236 mortos (dados de ontem).
Outro
cuidará dos voluntários, muitos exaustos, mas que se recusam a parar de
trabalhar. Outro garantirá o funcionamento 24 horas de plantão telefônico, que
fará os encaminhamentos necessários, inclusive para hospitais, em casos de mais
gravidade.
"Mas
temos percebido que a capacidade humana de elaborar o sofrimento agudo é
imensa. Quando voltamos aos países vítimas de catástrofes, vemos que as pessoas
conseguiram digerir e assimilar seus lutos. Com sofrimento profundo. Mas elas
conseguiram superar", diz Débora.
Segundo
ela, a experiência internacional mostra que a capacidade de cura é tamanha que,
em muitos casos, o desastre "funciona como reconfigurador de vidas",
diz. "Muitos dos que passam por experiência-limite como o incêndio da Kiss
encontram novos significados para a vida."
Ah!,
ontem ventou, choveu e a temperatura caiu. Já se respirava melhor na cidade.
LAURA CAPRIGLIONE - Colaborou
EDUARDO GERAQUE
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