ANTONIO
PRATA
Cliente paulista, garçom
carioca
Acostume-se,
conterrâneo, com a sua existência plebeia. O garçom carioca não está aí para
servi-lo
Veja,
aí estão eles, a bailar seu diabólico "pas de deux": sentado, ao
fundo do restaurante, o cliente paulista acena, assovia, agita os braços num agônico
polichinelo; encostado à parede, marmóreo e impassível, o garçom carioca o
ignora com redobrada atenção. O paulista estrebucha: "Amigô?!", "Chefê?!",
"Parceirô?!"; o garçom boceja, tira um fiapo do ombro, olha pro
lustre.
Eu
disse "cliente paulista", percebo a redundância: o paulista é sempre
cliente. Sem querer estereo-tipar, mas já estereotipando: trata-se de um ser
cujas interações sociais terminam, 99% das vezes, diante da pergunta "débito
ou crédito?". Um ser que tem o "direito do consumidor" em tão
alta conta que quase transformou um de seus maiores prosélitos em prefeito da
capital.
Como
pode ele entender que o fato de estar pagando não garantirá a atenção do garçom
carioca? Como pode o ignóbil paulista, nascido e criado na crua batalha entre
burgueses e proletários, compreender o discreto charme da aristocracia?
Sim,
meu caro paulista: o garçom carioca é antes de tudo um nobre. Um antigo membro
da corte que esconde, por trás da carapinha entediada, do descaso e da gravata
borboleta, saudades do imperador. Faz sentido.
Para
onde você acha que foram os condes, duques e viscondes no dia 16 de novembro de
1889 pela manhã? Voltaram a Portugal? Fugiram pros Açores? Fundaram um reino
minúsculo, espécie de Liechtenstein ultramarino, lá pros lados de Nova Iguaçu?
Nada disso: arrumaram emprego no Bar Lagoa e no Villarino, no Jobi e no Nova
Capela, no Braseiro e no Fiorentina.
O
pobre paulista, com sua ainda mais pobre visão hierárquica do mundo, imagina
que os aristocratas ressentiram-se com a nova posição. De maneira nenhuma, pois
se deixaram de bajular os príncipes e princesas do século 19, passaram a servir
reis e rainhas do 20: levaram gim tônicas para Vinicius e caipirinhas para
Sinatra, uísques para Tom e leites para Nelson, receberam gordas gorjetas de
Orson Welles e autógrafos de Rockfeller; ainda hoje falam de futebol com
Roberto Carlos e ouvem conselhos de João Gilberto. Continuam tão nobres quanto
sempre foram, seu orgulho permanece intacto.
Até que
chega esse paulista, esse homem bidimensional e sem poesia, de camisa polo,
meia soquete e sapatênis, achando que o jacarezinho de sua Lacoste é um crachá universal,
capaz de abrir todas as portas. Ah, paulishhhhta otááário, nenhum emblema
preencherá o vazio que carregas no peito -pensa o garçom, antes de conduzi-lo à
última mesa do restaurante, a caminho do banheiro, e ali esquecê-lo para todo o
sempre.
Veja,
veja como ele se debate, como se debaterá amanhã, depois de amanhã e até a
Quarta-Feira de Cinzas, maldizendo a Guanabara, saudoso das várzeas do Tietê,
onde a desigualdade é tão mais organizada: "Amigô, o bife era mal passado!",
"Chefê, a caipirinha de saquê era sem açúcar!", "Ô, companheirô,
faz meia hora que eu cheguei, dava pra ver um cardápio?!". Acalme-se,
conterrâneo. Acostume-se com sua existência plebeia. O garçom carioca não está aí
para servi-lo, você é que foi ao restaurante para homenageá-lo. E quer saber?
Ele tem toda a razão.
antonioprata.folha@uol.com.br
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