sábado, 1 de setembro de 2012



01 de setembro de 2012 | N° 17179
CLÁUDIA LAITANO

Homenagem desastrada

No soberbo Patrimônio, relançado agora no Brasil, o escritor/narrador Philip Roth faz um comentário sobre o pai, que ficou perambulando alguns dias na minha cabeça: “Como todos nós, ele só entendia o que entendia”. Por trás da aparente banalidade da frase, esconde-se uma observação extremamente lúcida sobre a forma como nos comunicamos uns com os outros – ou não.

Membros de uma mesma família, casais, amigos íntimos, pais e filhos, colegas de trabalho, mesmo as pessoas mais próximas correm o risco de inadvertidamente causar estragos com um gesto ou uma palavra – simplesmente porque nem sempre se dão conta de que uma mesma palavra ou um mesmo gesto podem ser interpretados de diferentes formas por diferentes pessoas.

Se é verdade que os esquimós têm sete expressões diferentes para “neve” deve ser porque são capazes de perceber sutilezas na forma e na textura do gelo virtualmente invisíveis para quem nunca dormiu em um iglu.

Você pode ficar muito satisfeito quando diz “neve”, convencido de que deu o seu recado, mas para efeitos de clareza e compreensão mútua é bom levar em conta que o que é neve na sua cabeça pode não ser a mesma neve que cai na cabeça do esquimó.

Quando eu era criança, tinha uma amiga que costumava se vangloriar de falar vários idiomas. Para convencer os desconfiados, ela dizia “bom-dia” em três ou quatro línguas e depois fazia uma pausa dramática – provavelmente aguardando os cumprimentos e um pedido de desculpas do interlocutor. Para o entendimento de uma menina de nove anos, bastante satisfeita com seus “bon-jours” e “guten-tags”, ela realmente era poliglota, sentia-se poliglota. O que sabia de francês ou de alemão era uma gota no oceano de um idioma – mas nessa gota ela nadava e era feliz.

Muitos adultos, ingenuamente convencidos de que a sua percepção do mundo contempla a complexidade multiforme da experiência humana, fazem a mesma coisa: confundem o baldinho de praia em que nadam com o oceano. Por falta de luzes, arrogância ou ambos, tomam a parte pelo todo – satisfeitos que são na estreiteza do próprio horizonte.

Peguem a dona Cecilia Giménez, a senhora de 81 anos que tratou de restaurar o afresco Ecce Homo, do pintor Elías García Martínez, instalado há dois séculos nos muros de uma igreja em Zaragoza, na Espanha. Na cabeça simplória, talvez já não tão lúcida, da velha senhora, restaurar uma pintura antiga é como dar um tapa numa velha cômoda descascada.

Munida da espessa ignorância dos amadores e convicta de que estava prestando uma “homenagem” ao artista, acabou fazendo uma lambança. Quem olha o novo afresco acaba rindo do resultado grotesco da restauração, mas o artista “homenageado”, se pudesse opinar, talvez não achasse tanta graça assim na brincadeira.

Resta agora a esperança de que o estrago possa ser consertado, e que dona Cecilia seja afastada dos pincéis antes de causar novos danos. O que sentir pela senil e inábil velhinha e sua homenagem desastrada? Pena, olímpica pena.

Afinal, só entendemos o que entendemos.

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