sábado, 9 de junho de 2012



09 de junho de 2012 | N° 17095
NILSON SOUZA

Os deuses vendem quando dão

A vida é um sopro e 20 anos não é nada, cantava Carlos Gardel. E 30? Pois esta semana levei um susto quando me dei conta de que já se passaram três décadas do dia em que encontrei o homem mais solicitado do mundo passeando sozinho numa praia de Portugal.

Não, não era o Papa, nem John Lennon, assassinado dois anos antes. Naquele início de junho de 1982, o homem mais solicitado do mundo era Telê Santana, técnico da Seleção Brasileira, que estava a caminho da Copa da Espanha. Cada vez que ele dava uma entrevista coletiva, batalhões de repórteres e fotógrafos de todos os continentes se formavam para ouvi-lo e questioná-lo.

Como jornalista esportivo, eu também estava na Europa para cobrir o Mundial. Acordei cedo naquela sexta-feira de junho, dia de folga da Seleção, que fazia uma adaptação em Lisboa. Quando olhei pela janela da estalagem Mar do Guincho, em Cascais, onde estava hospedado justamente para ficar próximo da Seleção, nem acreditei: Telê caminhava solitário à beira do mar, com uma máquina fotográfica a tiracolo.

Em poucos minutos, estava a seu lado. Ao identificar-me como gaúcho, fui recebido com simpatia, pois o treinador mineiro trabalhara quatro anos antes em Porto Alegre e tinha a melhor impressão do Rio Grande e de sua gente.

Caminhamos e conversamos durante mais de uma hora. Em várias ocasiões, ele me pediu que o fotografasse em cenários bonitos do local. Chegamos até a estrada que leva a Sintra, onde está o Cabo da Roca, o ponto mais ocidental do continente europeu. Lá tem um monumento com uma célebre frase de Camões: “Aqui... onde a terra se acaba e o mar começa”.

De Camões eu pouco sabia, mas aquele momento e aquele lugar me fizeram lembrar Fernando Pessoa: “Ó mar salgado, quanto de teu sal são lágrimas de Portugal”. Ou esta outra, que decorei nas aulas de literatura da faculdade: “Os deuses vendem quando dão./ Compra-se a glória com desgraça./ Ai dos felizes porque são/ só o que passa”.

Claro que não falei nada disso para meu cordial e famoso companheiro de caminhada. Falamos de futebol, evidentemente, mas o assunto principal foi o cigarro. Telê odiava cigarros. Disse-me que fora um fumante insensível e intransigente, a ponto de xingar a filha quando esta reclamou da fumaça numa viagem de carro. O choro da menina, me contou, fez com que ele refletisse e nunca mais pusesse um cigarro nos lábios.

Voltamos do passeio, mais tarde estivemos juntos em Sevilha e Barcelona, onde a Seleção Brasileira encantou o mundo e alegrou a Itália, na célebre tragédia do Sarriá. O estádio não existe mais, Telê não existe mais, o futebol mágico do time de 82 não existe mais.

Pessoa tinha razão: compra-se a glória com desgraça. Trinta anos se passaram.

Um sopro, mas impossível de esquecer.

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