03
de março de 2015 | N° 18090
FABRÍCIO CARPINEJAR
DEVOLVA-ME
O
sotaque da terra natal desarma os ouvidos mais duros, suaviza os corações mais
indóceis.
É encontrar
um conterrâneo e já voltamos a falar como na infância, apesar de longo tempo
distante. Não precisamos nem de cinco minutos de conversa para reaver o tom, o
chiado, as expressões, os acentos.
Nada
é mais reconfortante do que o contato com a pronúncia de onde nascemos. Ainda
mais quando passamos temporadas fora do nosso Estado.
Caio,
engenheiro natural de Uruguaiana, há três décadas nos Estados Unidos, foi vítima
de um câncer nos ossos. Nenhum tranquilizante era capaz de amenizar as dores e
levantá-lo do cansaço ultrajante do fim. Estava se entregando. Indo embora. Fez
um pedido extravagante para sua mulher. Um último pedido. Reivindicou para sua
esposa americana um mapa do Rio Grande do Sul. Tinha que ser de papel. Mapa
rodoviário de estrada.
Como
quem procura um medicamento inédito diante da falta de efeitos, ela nem
questionou. Aquilo seria fácil para que mora em Porto Alegre, possível de
comprar em qualquer tabacaria, mas em Austin, não, não podia ser mais raro.
Ela
encomendou com os irmãos de Caio, que moravam em Caxias. Cobriu tudo o que é despesa
aérea para agilizar a entrega.
Quando
Caio recebeu o mapa, recobrou a cor da pele e desafiou os familiares com uma
energia extra. Era um outro homem repentinamente. Com intimidade de uma camisa
antiga passada pela mãe, desdobrou o papel e cheirou a superfície.
As
linhas azuis dos rios bem que poderiam ser a cartografia saliente de suas veias.
Pegou os óculos e passou a ler as cidades por ordem alfabética:
“Água
Santa, Agudo, Ajuricaba, Alecrim, Alegrete, Alegria, Alpestre, Alto Alegre,
Alto Feliz, Alvorada, Amaral Ferrador, Ametista do Sul, André da Rocha, Anta
Gorda, Antônio Prado, Arambaré, Araricá, Aratiba, Arroio Grande, Arroio do
Meio, Arroio do Sal, Arroio do Tigre, Arroio dos Ratos, Arvorezinha, Augusto
Pestana, Áurea, Bagé...”
Começou
a rir, tossia e ria, absurdamente feliz. Estava reeducando os ouvidos.
Sua
voz falhava e não desistia, insistia tal piá empinando pipa. Os olhos lustrosos
e corajosos dando cada vez mais corda ao horizonte, segurando firme cada
palavra, não se entregando às puxadas do minuano.
Morreu
recitando os 497 municípios, numa viagem particular pelas curvas e estradas de
seu timbre.
Quem
me contou esta história foi seu filho Daniel. Mas só acredito porque sou gaúcho.
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