domingo, 31 de outubro de 2010


JOSÉ SIMÃO

Ueba! Vou acordar o mesário!

E os candidatos estão incentivando as drogas, o voto doidão. Você aperta um e depois aperta três

BUEMBA! BUEMBA! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! UFA! Me bate um abacate! Essa campanha foi mais longa que o Carnaval da Bahia! Fim do segundo TRANSTURNO.

Eu vou votar às 7h. Vou acordar o mesário. Vou bater lá na casa dele: "Acorda! Eu quero votar".

E adorei a charge do Thomate: "Querida, você prefere Serra ou praia?". Moral do feriadão: Serra, praia ou Dilma?!

E diz que Minas é decisivo. Minas e religião. Tanto que uma amiga socialite estava numa igreja em Ouro Preto quando foi abordada por duas freiras: "Minha senhora, nós somos Irmãs de Cristo". "Nossa, como vocês estão conservadas!" Rarará! Devem ser irmãs do Itamar!

E a penúltima da minha ídala dona Weslian: "Eu prometo um governo de felicidade". Já sei, ela vai botar Rivotril na caixa d" água! E sabe por que o Serra tá com treta nas obras do metrô? Porque vampiro gosta de aprontar no escuro. Nas profundas! Rarará!

E eu tenho uma pergunta pro papa Sebento 16: "Eu não sou batizado, posso votar?". PODE, MAS NÃO DEVE! Eu acho que vou abortar a minha ida à urna. Pensei em votar, mas abortei a ideia!

E os candidatos estão incentivando as drogas, o voto doidão: aperta um e depois aperta três. Aperta quatro e depois aperta cinco. E passa quatros anos doidão! De tanto falar em aborto, essa campanha foi um PARTO! Parto pra ignorância! Falaram tanto em religião, mas esqueceram de falar do PADREFOLIA: coroa que come coroinha. A sacranagem!

Agenda dos candidatos: "Quadrilha recebe Dilma em Caruaru". Já sei, era a Erenice soltando um balão. Com aquela cara de Marlene Mattos! Rarará!

"Serra vai pra Assembleia de Deus no Paraná, ora, lê a Bíblia e promete vetar lei contra homofobia." Virou pastor evangélico mesmo! "Votem em mim! Cegos veem! Paralíticos andam! MORTOS LEVANTAM!"

E uma amiga disse que vai votar no Serra porque tá com saudades do FMI e não aguenta mais pobre em avião. E uma outra disse que vai votar na Dilma pra não ficar com saudade do Lula. E porque a Dilma vai estatizar até a Vuitton do Iguatemi. Olha, se ela estatizar a Vuitton, a Marta mata ela! Rarará!

A situação está psicodélica. Ainda bem que nóis sofre, mas nóis goza. Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

FERREIRA GULLAR

Por que Dilma?

A resposta talvez esteja no apego de Lula ao poder. Nisso, ele não constitui exceção

HOJE SE encerra uma das mais acirradas disputas pela Presidência do país. Se é verdade que nenhuma das disputas anteriores foi igual a outra, esta tem um fator ausente a todas as outras: um dos disputantes -no caso, uma, a Dilma-, ao que tudo indica, jamais imaginara candidatar-se ao mais alto cargo político da nação, já que nunca disputara cargo eletivo algum.

Esse fato, por si só, ainda que inusitado, seria irrelevante, se a opção a candidatar-se houvesse ocorrido a ela por decisão própria, como expressão de um desejo, que ocultara por tanto tempo e que finalmente decidira assumir. Seria estranho pelo ineditismo, mas, sem dúvida alguma, menos surpreendente do que, como foi o caso, ter que aceitá-la por imposição de seu chefe, o presidente Lula.

Não houve nisso nada de ilegal ou imoral, embora esse não seja o procedimento normal para a escolha de uma candidatura. Normal seria o partido discutir as candidaturas possíveis e optar por uma delas, como resultado de consenso ou decisão da maioria.

Não houve nada disso: o nome de Dilma foi imposto por Lula ao PT, que não teve outra alternativa senão engoli-la. Isso, certamente, desagradou a muita gente dentro do partido, mas o fato é que Lula não tem o PT como um entidade autônoma, a cujas decisões deva ele submeter-se.

Longe disso, ele o tem como um instrumento de sua ação política, que não respeita nem as regras estatutárias nem o amor próprio dos companheiros, que estão ali apenas para ouvir as ordens e cumpri-las.

Haveria exemplo mais claro disso do que a destituição, por ordem dele, em 2005, de toda a direção do partido, comprometida com a sujeira do mensalão? Foi, sem dúvida, uma medida eficaz, mas essencialmente autoritária.

A pergunta que fica sem resposta, em face da candidatura de Dilma, é por que ele a escolheu. Esta não é primeira vez que me faço essa pergunta, que pode suscitar diversas respostas.

Por que escolher para disputar a Presidência da República uma senhora que nunca disputou qualquer eleição e não dispõe de um currículo capaz de categorizá-la para ocupar tão importante cargo?

Como a hipótese de apoiar o candidato de um partido aliado estará sempre fora de cogitação, uma vez que a última coisa que Lula e o PT admitem é dividir hegemonia com alguém -restaria a alternativa de escolher um nome de seu próprio partido, não envolvido nas falcatruas do mensalão.

É certo que não havia muitos nomes viáveis nem de grande projeção nacional. De qualquer modo, mais conhecidos e tarimbados do que a Dilma havia vários.

Por que, então, não cogitou deles nem permitiu que o partido os discutisse? Por que a fixação indiscutível em Dilma Rousseff, muito menos conhecida e muito menos gabaritada que os outros?

Há, certamente, alguma razão para isso, uma vez que, como se sabe, Lula não prega prego sem estopa nem faz nada desinteressadamente por ninguém. Se ele escolheu Dilma, foi por que essa escolha, mais que qualquer outra, convinha a seus interesses pessoais.

Essa escolha implicava um risco possivelmente maior do que a de outro nome, já que, além de não ser conhecida nem ter nenhuma realização a apresentar, é destituída de charme, carisma e desenvoltura.

Por que então escolhê-la? A resposta talvez esteja no apego de Lula ao poder. Nisso, ele não constitui exceção, mas, não tendo outra qualificação pessoal que seu carisma, qual papel de relevo lhe restará fora da Presidência?

A alternativa possível seria tentar voltar, em 2014, usando a gestão de Dilma como mandato tampão, já que ela, devendo tudo a ele, não se atreveria a pretender reeleger-se.

Isso explicaria também por que essa campanha foi para ele uma questão de vida e morte, mudando-se de presidente em cabo eleitoral, sem respeitar nem seu cargo nem as leis, como se o candidato, de fato, fosse ele.

E, em última instância, era. Dilma não é mais que uma marionete, de que ele se vale para tentar voltar ao poder. A menos que as urnas, hoje, lhe digam não.

Asco: a campanha da Dilma divulgou pela internet uma mensagem mentirosa de apoio meu a sua candidatura. Coisa de moleques.

FELIZ DIA DAS BRUXAS

DANUZA LEÃO

É hoje

Que Deus proteja o Brasil. Quando novo presidente é eleito, tudo muda, para melhor ou para pior

BOA SORTE ao eleito de hoje.

Se for aquele em quem votei, ótimo; se não for, boa sorte assim mesmo, e que Deus proteja o Brasil -e nos proteja. Hoje à noite, na hora em que Lula puser a cabeça no travesseiro, vai cair a ficha: agora é só uma questão de tempo, e pouco tempo.

Ele se acostumou com o sucesso e a popularidade, mas vai ter também que se acostumar a não ser mais presidente da República, só que não vai ser assim tão fácil. Para isso é preciso ter sabedoria e equilíbrio, qualidades que definitivamente o presidente não tem.

Lula sonhou alto; pretendia ser secretário-geral da ONU, pretendia que o Brasil fizesse parte do Conselho de Segurança, pretendia ganhar o Nobel da Paz, quis resolver o confronto no Oriente Médio, foi chamado por Obama de "o cara"; começou a se achar dono do mundo, meteu os pés pelas mãos e conseguiu, na hora de sair, ficar mal na foto. Bem mal.

Qualquer que seja o resultado de hoje, temos boas razões para comemorar. Não vamos mais ver na TV Lula andando com o microfone na mão, como se estivesse num auditório, dizendo "nunca antes nesse país", comparando tudo que acontece a um jogo de futebol, sem um pingo de graça.

Não vamos mais ver Marisa Letícia vestida de verde e amarelo nas comemorações da Independência ou de vermelho em carreata eleitoral, saudando o povo com os braços para o alto, como se fosse uma miss; sua voz, ninguém jamais ouviu, e seu único ato foi fazer um canteiro com uma estrela vermelha no jardim do Palácio da Alvorada. Que foi retirada, por sinal.

O Brasil, que já tinha ficado bem mal educado nos tempos de Collor, ficou ainda menos educado depois dos oito anos de Lula. A falta de cerimônia, os péssimos modos, a maneira de se dirigir a seus adversários, o pouco caso com que atropelou as leis eleitorais; dizer inverdades, agindo como se os fins justificassem quaisquer meios, e que a impunidade é lei. Tudo foi um péssimo exemplo.

Quando um novo presidente é eleito, tudo muda - para melhor ou para pior. Penso em Cristina Kirchner, que deve estar passando por maus momentos, em todos os sentidos. Como fará para governar o país, sem seu marido ao lado para encarar os problemas, maiores ou menores?

É o perigo de ser eleito/a um candidato/a que precisa de quem o dirija na hora do aperto, para que o país não fique à deriva. Já pensaram se a mulher de Joaquim Roriz vence a eleição no Distrito Federal e seu marido morre? Antes de votar, há que se pensar em tudo, até no que parece impossível poder acontecer. E se acontecer?

Lula deve estar cansado, merece umas férias, e será recebido com festa na Venezuela, em Cuba e também no Irã. Vai, Lula, você merece: nós também estamos muito cansados de você.

PS - Não há mais o que falar sobre eleição; então, depois de votar, passe numa livraria e compre o livro "Contra um Mundo Melhor", de Luiz Felipe Pondé, editora Leya. Tive dificuldade em alguns trechos -difíceis para quem não tem uma grande cultura-, por isso aconselho a deixá-lo na mesa de cabeceira, pegar de vez em quando, abrir em qualquer página e reler.

É uma leitura perturbadora, que nos faz pensar, o que fazemos pouco. Dê a você essa chance, a de pensar. Juro que não dói.

danuza.leao@uol.com.br

ELIANE CANTANHÊDE

Fechou-se o cerco

BRASÍLIA - Foi-se o tempo em que o petróleo era nosso. Agora, o petróleo é de Lula. As fotos do presidente mais popular da história, de capacete da Petrobras, num macacão cor de abóbora e com as mãos sujas de óleo da nova bacia são a principal imagem da campanha de 2010 e o símbolo da simbiose do Estado com um projeto de poder.

Como ensina o marqueteiro do rei, João Santana, campanhas não trabalham com a realidade e a verdade, mas com símbolos e com a emoção e o imaginário coletivos.

Foi por isso que as estatais e até o BNDES -que não é banco de varejo nem presta serviço- entraram na dança da propaganda subliminar, veiculando durante meses na TV, antes e durante a campanha, um paraíso onde tudo é lindo e todo o povo, feliz e satisfeito. Mas nada se compara ao uso da Petrobras. E assim foi-se definindo a eleição.

Dilma assumiu cedo a dianteira e só veio caindo desde o final do primeiro turno sob pressão da entrada em cena de Erenice Guerra. Serra passou a subir no segundo, herdando parte dos votos de Marina.

O ponto de equilíbrio, com ambos batendo no teto, chegou antes do cruzamento das duas linhas. Daí à certeza da vitória de Dilma, à desmobilização da oposição, à praia do eleitor tucano no feriadão. Com dez pontos de diferença, o resultado está praticamente definido.

Hoje, a eleição acaba e muitas perguntas começam: Lula se contentará em ser o líder mundial contra a fome, ou vai continuar presidente de fato do Brasil? Dilma assumirá de vez a fantasia da candidata ou voltará a ser a gerentona? Quem, e como, vai controlar o PT, o PMDB e PSB (além dos menos cotados)?

Com o cenário externo a favor e a casa arrumada em 16 anos, Dilma tem tudo para fazer um bom governo. Mas torcendo para não haver sobressaltos na economia. Ela, a economia, deu a liga para a imensa aliança vitoriosa a favor de Dilma. O carisma de Lula, o marketing e a falta de prurido fizeram o resto.

elianec@uol.com.br

sábado, 30 de outubro de 2010



31 de outubro de 2010 | N° 16505
MARTHA MEDEIROS


A última que morre

Sem querer ofender ninguém: a esperança ficou obsoleta

Atualmente, há tanta informação para digerir que não sobra espaço na cabeça para questionar ditados já consagrados. Então, seguimos repetindo, dia após dia, frases que nos parecem definitivas, como A esperança é a última que morre, sem nos darmos conta de que elas não são definitivas coisa nenhuma. Por que manter um estado de ilusão eterno? Em certas circunstâncias, é muito bom perder a esperança.

Esperança não transforma o mundo. Não muda a sua vida. Apenas oferece um breve conforto, faz de conta que as coisas se arranjarão sozinhas através do pensamento positivo. Mas uma coisa é confiar em bons prognósticos, mentalizar situações agradáveis, e outra bem diferente é ficar esperando milagres. Sem querer ofender ninguém: a esperança se tornou obsoleta.

Você tem esperança de quê? De um mundo melhor, de um país mais justo? Ainda? Ok, gostaríamos que as coisas fossem diferentes, mas a diferença só se efetiva por meio de ações e reações. Quando você tem esperança, tudo o que precisa fazer é ficar sentado aguardando. Já quando ela morre, acaba a morosidade. Você vira a página, troca de capítulo, vai batalhar por outra coisa. Alguém que cansou de esperar é sempre mais produtivo.

Dificilmente analisamos as desistências por um foco salutar. Elas podem ser o combustível para o início de outro projeto, de um desejo novo. Nem tudo nasceu para dar certo.

Algumas coisas são tortas por natureza, são boas uns 25%, e os outros 75% não tem pai-nosso que dê jeito. Ficar paralisado diante de algo que nunca vai mudar é estratégia de preguiçoso. Diante do que não muda, só há uma coisa a fazer: mudar a si mesmo, sacrificando as suas antigas e boas intenções.

Ter esperança de um mundo melhor é um sentimento megalômano. Desista de pensar no mundo, não seja tão ambicioso. Ele nunca vai ser muito melhor do que é, mas seu prédio pode ser, o seu local de trabalho pode ser, já que microcosmos não funcionam à base de esperança, e sim de realizações.

Não que eu proponha radicalizar. A gente pode ter um pouquinho de esperança, claro, desde que ela tenha um prazo de validade, não se transforme numa acomodação vitalícia. Tenha esperança até a página 15. Se a história não avança, não é preciso morrer decrépito segurando o mesmo livro na mão. Ele vai continuar chato, vai continuar engessando você.

O desejo é que deve ser o último a morrer. Ele, sim, merece o prestígio que a esperança, essa velha senhora, ainda pensa que tem.

Gostoso domingo de eleição pra você. Vote consciente. Feliz Dia das Bruxas né.


31 de outubro de 2010 | N° 16505
PAULO SANT’ANA


Os juízes

Estiveram aqui na Redação as juízas de Direito Jane Vidal e Dulce, esta de uma das varas de família, junto com o juiz Afif Simões Neto.

Vieram me convidar para o lançamento de um livro compilado pela Ajuris, no qual figuram muitas crônicas escritas por magistrados e por jornalistas e escritores, entre as quais aquela minha célebre sobre os meus amigos.

O lançamento será na terça-feira, dia 2 de novembro, no Memorial do RS, na Feira do Livro, às 20h.

Ficaram estupefatos com o fato de que era uma sexta-feira e eu, na mesma tarde, era obrigado a escrever as crônicas de sábado e domingo, coisa de três ou quatro horas.

– Que é isso – disse-lhes eu – para quem já escreveu 16 mil crônicas em 38 anos de Zero Hora?

Existe um magnetismo entre mim e a magistratura. Deve ser porque em meus escritos abundam respeitosas reverências que faço aos homens e mulheres que têm a tarefa de julgar os seus concidadãos.

Eu vivo repetindo que não queria ser juiz. Longe de mim a façanha espinhosa de ter de julgar os outros, dando magicamente ganho de causa a uns e perda de causa a outros.

Longe de mim! E, no caso dos juízes penais, que dilema deve ser decidir que um homem com família deve ir para detrás das grades.

Deve ser lancinante tanto condenar quanto absolver. Não ter certeza sobre a inocência ou culpabilidade de alguém tem de ser uma das experiências mais amargas por que se debruçam os juízes.

E tantas outras experiências curiosas e exasperantes dos juízes. Como a de exercer controle sensorial sobre os depoimentos das testemunhas, baseando muitas vezes a sentença nesse colóquio: avaliar se uma testemunha está sendo sincera ou hipócrita ou industriada ou simplesmente equivocada.

Fazer justiça, eis uma das tarefas mais cruciais entre todas as que foram designadas aos humanos.

E chego a me arrepiar diante da hipótese plausível de que no meio desse processo todo se façam injustiças.

Mas é que não encontramos outro meio mais eficaz de distribuição de justiça que não seja este: homens julgando homens, quando o ideal seria que fôssemos julgados exclusivamente por Deus.

Mas o homem tem pressa e não quer esperar por Deus para obter justiça.

Então, se convencionou que todos acorrem aos pretórios para tentar conseguir justiça.

E os que vão às barras da Justiça devem estar preparados para ganhar ou para perder, isso é o que dói, o que punge, o que devora.

Ganhar na Justiça é um dos maiores trunfos da raça humana. Perder na Justiça é uma das maiores quedas entre os homens.

Já escrevi aqui que, no dia em que eu tiver de ser julgado, não quero que me julgue um juiz bom e generoso. E não temeria que me julgasse um juiz implacável e impiedoso.

A única coisa por que anseio, no dia que tiver de ser julgado, é por um juiz justo.

E, se ele for justo, há de punir-me com severidade ou absolver-me com justeza.


31 de outubro de 2010 | N° 16505
MOACYR SCLIAR


A festa das bruxas

Todos temos uma inconsciente propensão para a bruxaria. O Halloween nada mais faz do que permitir que essas fantasias sejam externalizadas

Festa é festa, e festa deveria ser sempre bem-vinda, mas muita gente não gosta do Halloween. Em primeiro lugar, porque é basicamente coisa de americano; não faz, ou não fazia, parte de nossa cultura. Depois, porque é a festa das bruxas, um resíduo do paganismo celta.

Mas a influência americana está presente em nosso cotidiano, indo dos anglicismos ao McDonalds; e a evocação das bruxas a rigor não envolve uma crença, é muito mais uma gozação. Aliás, fazer brincadeiras com coisas misteriosas ou amedrontadoras é um jeito de controlar nossa ansiedade, como se vê no México, no Dia de Finados ali as calaveras, esqueletos feitos de açúcar, fazem parte do folclore.

A propósito, não deixa de ser curioso o fato de que o termo Halloween venha de All-Hallows-Even (evening), referindo-se à noite que precede o Dia de Todos os Santos, este, por sua vez, antecedendo Finados. Ou seja, uma tríade significativa, que nos fala de bruxaria, de fé cristã e da morte.

As bruxas são figuras fascinantes. E simbólicas. Para começar, trata-se em geral de mulheres; bruxos existem, mas são bem mais raros. E são mulheres com poderes extraordinários, resultantes de pactos com o demônio, basicamente usados para prejudicar pessoas.

Alusões a bruxas são muito antigas, mas, no Ocidente, elas passaram a ser perseguidas com peculiar furor por volta do século 15. Um marco nesse sentido foi o lançamento, em 1487, da obra Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), escrita pelos inquisidores Heinrich Kramer e Jakob Sprenger (acreditem, vocês, ou não, houve um líder nazista com este último nome).

Graças ao advento da imprensa, o livro teve enorme difusão, sobretudo porque correspondia a vários temores e preconceitos da época. Era o começo da modernidade, uma fase revolucionária e confusa, uma fase em que se misturavam a ciência e a superstição, a liberação dos costumes com a repressão. É então que surge a caça às bruxas, que se estendeu por dois séculos e resultou em cerca de 100 mil execuções de mulheres.

A pergunta se impõe: por que o sexo feminino? Em primeiro lugar, porque as mulheres sempre foram vistas (pelos homens) como depositárias do mal, coisa que começa com Eva. Depois, porque era então comum associar desejo sexual e malignidade, e aí, dê-lhe fogueira. As mulheres executadas eram em geral idosas, conhecidas pelo temperamento rebelde ou estranho, pelo gênio independente e não submisso.

O tempo passou, essas ideias mudaram. Em 1958, a grande Maria Clara Machado escreveu uma peça infantil com um título significativo: A Bruxinha que Era Boa. Ou seja: bruxas más existiam, mas exceções, uma bruxinha que era boa, eram possíveis.

O certo é que todos nós temos uma oculta, inconsciente, propensão para a bruxaria, que resulta de nossos temores, de nossos secretos desejos, de nossas fantasias. O Halloween nada mais faz do que permitir que essas fantasias sejam externalizadas, sob a forma de brincadeiras. E brincar, mesmo de bruxa, sempre é bom.


31 de outubro de 2010 | N° 16505
DAVID COIMBRA


O teste de Cibele

Durante a maior parte da história do mundo, Deus não era Deus; era Deusa. Primeiro porque os seres humanos demoraram milhões de anos para compreender o papel do homem na reprodução. Sabiam que os nenês se desenvolviam na barriga da mulher e, chegado o tempo, blop, dela saíam protestando.

Mas como tinham ido parar lá?

Talvez nossos mais remotos ancestrais até intuíssem que havia alguma contribuição da atividade sexual na concepção, mas não podiam ter certeza de que o filho de uma mulher era de um só homem. Afinal, não existia casamento, nem o conceito de fidelidade conjugal. Ninguém era de ninguém nos velhos e bons tempos. Uma mulher se repoltreava, chafurdava e espadanava com vários homens, às vezes todos os da tribo, que alegria.

Assim, a mulher era o veículo da vida. A mãe. Natural que fosse venerada.

Mais tarde, provavelmente observando os animais enfim domesticados, as pessoas compreenderam que os machos também faziam filhos.

A maneira como os seres humanos viam o homem estava mudando.

Mas a Deusa manteve seu prestígio, porque os homens pouco se importavam com sua descendência. Por um simples motivo: os humanos primitivos eram nômades, não tinham propriedade, a não ser pequenos pertences que podiam carregar ao se transferir de um acampamento para outro. Se os homens não tinham propriedade, não tinham herança. Se não havia herança, qual era o sentido de “preservar a descendência”?

Com a invenção da agricultura é que foi inventada a propriedade. Em suma, com a invenção da agricultura foi inventado o capitalismo. Então, o homem queria deixar sua terra para o seu filho. E sua casa. E suas posses. E seu poder. E, por consequência, seu nome.

Entenda o que escrevi acima: “Por consequência”, não “por causa”. Os nomes e dinastias se formaram a partir da propriedade e do poder, não o contrário.

Bem. Mas como saber que o filho era do homem proprietário e poderoso? Não havia teste de DNA. A mãe era aquela ali, ninguém duvidava, o filho fora cuspido de seu ventre. Mas o pai... Como saber quem era o pai, se ninguém era de ninguém?

Foi essa angústia que gerou a instituição do casamento, da monogamia, da fidelidade conjugal, da família e de todos os nossos problemas. Alguém precisava ser de alguém. A partir de agora, o homem virava proprietário não apenas das suas terras, mas de seus filhos e da sua mulher. O homem cresceu em importância na comunidade. E a Deusa foi trocada pelo Deus. Os hebreus se encarregaram disso. Substituíram a Deusa Mãe pelo Deus Pai. O judaísmo e seus derivados, o cristianismo e o islamismo, são religiões masculinas e capitalistas. Religiões sombrias, eivadas da noção de pecado. Religiões que falam de posse e poder.

A antiga religião, da Deusa Cibele, era uma religião orgiástica, de celebração da existência, uma religião sem culpas. Mas que tinha suas normas. Para se tornar sacerdote da Deusa Cibele, o homem precisava passar por algumas provas. Uma delas se constituía no seguinte: o sujeito devia atravessar uma extensa ponte que ficava tomada por anciãos sentados à esquerda e à direita, encostados nos parapeitos, formando uma espécie de corredor polonês.

O candidato a sacerdote passava por entre os anciãos, que o insultavam. Diziam tudo de ruim que sabiam a respeito dele, inventavam ofensas, xingavam-no à exaustão. Se o pobre difamado conseguisse chegar ao outro lado da ponte sem se abalar, estava aprovado.

A internet é mais ou menos assim. Emails, tuíter, comentários de blog, tudo é quase instantâneo, a pessoa senta-se diante de um teclado e desabafa suas frustrações pela ponta dos dedos. Quem lida com esse instrumento tem de entendê-lo. É como se fosse uma provação. Um exercício de humildade.

A pessoa pública, como os jogadores de futebol, não pode se deixar levar pelas provocações. O torcedor, irracional, apaixonado e irresponsável, esse pode dizer o que bem entender. E diz. Como diz. O profissional, não. O profissional tem de se conter. Ou será reprovado no teste.

Ruth de Aquino

O rodeio dos imbecis

Universitários que “montam” à força em colegas gordas, numa competição para ver “qual peão” fica mais tempo sobre as meninas, são o retrato cru de uma sociedade doente e sem noção. O “rodeio das gordas” aconteceu em outubro em jogos oficiais de uma universidade importante, a Unesp, em São Paulo – não em algum rincão remoto. Não envolveu capiau nem analfabeto. Foi a elite brasileira, a que chega à universidade. Estamos no século XXI e assistimos perplexos à globalização da ignorância moral.

Mais de 50 rapazes, da Universidade Estadual Paulista, organizaram o ataque às gordas num evento esportivo e cultural com 15 mil universitários. Uma comunidade no Orkut definiu as regras: “Todo peão deve permanecer oito segundos segurando a gorda”; “gordas bandidas são mais valiosas”; “o corpo da gorda tem de ser grande, bem grande”.

Os estudantes se aproximavam das meninas como se fossem paquerá-las. Aproveitavam para agarrá-las e montar nelas, e as que mais lutavam contra a agressão eram apelidadas de “gordas bandidas”. Uma referência ao touro Bandido, personagem da novela América. “A cada coice tomado, o peão guerreiro ganha 1 ponto”, anunciava o site de relacionamento.

A repercussão assustou os universitários. Roberto Negrini, um dos organizadores do torneio e filho de advogada, chamou tudo de “brincadeira”, mas pediu desculpas à diretoria da Unesp e se disse arrependido. Tentou convencer a todos de que “não houve preconceito”. Sites e blogs foram invadidos por comentários indignados.

Mas havia muitos homens aplaudindo “a criatividade” dos estudantes. O internauta Arnaldo César Almeida, de São Paulo, propôs transformar a competição num “esporte olímpico”. Outro, que se identificou como Alexandre, escreveu: “Me divirto vendo esses kibes (sic) humanos dando coice! Vou até instalar uma baleia mecânica para treinar”.

Quem são os pais e as mães desses rapazes? A maior responsabilidade é da família. O que fez ou onde estava quem deveria tê-los educado com valores mínimos de cortesia e respeito ao próximo? Jovens adultos que agem assim foram, de alguma maneira, ignorados por seus pais ou receberam péssimos exemplos em casa e na comunidade onde cresceram. O “rodeio das gordas”, promovido nos jogos da Unesp, é o retrato de uma sociedade doente

Não foi uma semana edificante. Meninas adolescentes, numa escola paulista em Mogi das Cruzes, trocaram socos. A mais agredida, de 14 anos, disse: “Alguns têm dó, mas outros ficam rindo porque eu apanhei”.

Em Brasília, uma estudante usou a lâmina do apontador para navalhar o rosto e o pescoço da colega. No Rio de Janeiro, uma professora foi presa por manter relações sexuais com uma aluna de 13 anos. A loura da Uniban, Geisy Arruda, posou pelada, sem o microvestido rosa-choque, mostrando que tudo acaba na busca de fama e uns trocados.

Está na hora de adultos pensarem com cautela se querem colocar um filho no mundo. Se querem cuidar de verdade dessa criança. Ouvir, conversar, beijar, brincar, educar, punir, amparar, dedicar um tempo real para acompanhar seu crescimento, suas dúvidas e inquietações.

Descaso, assédio moral e físico contra crianças, brigas entre pai e mãe, separações litigiosas podem levar a tragédias como a que matou a menina Joanna. Submetida a maus-tratos e negligência, Joanna talvez tenha simplesmente desistido de continuar no inferno em que se transformara sua vida aos 5 anos de idade.

Não sou moralista. Mas a sociedade mergulhou numa disputa de baixarias. As competições escancaradas na TV aberta, sob a chancela de “entretenimento”, estimulam a humilhação pública e a indignidade humana.

Comer pizza de vermes e minhocas vivas, deixar ratos e cobras passear pelo corpo de uma moça de biquíni, resistir a vômitos, como prova de determinação e bravura – isso é exatamente o quê? Expor pessoas ao ridículo, enaltecer o lixo, a escória, em canais abertos a crianças e adolescentes... não seria inaceitável numa sociedade civilizada?

Diante de alguns programas televisivos, o “rodeio das gordas” pode parecer brincadeira. Mas não é.


30 de outubro de 2010 | N° 16504
NILSON SOUZA


Catadores de milho

Minha professora de datilografia perdeu tempo comigo. Sim, venho de um tempo em que datilografar (pretérito pré-histórico do verbo digitar) era um diferencial competitivo no mercado de trabalho. Aprendi a escrever com os 10 dedos, sem olhar para o teclado, e achava que essa habilidade me faria um profissional diferenciado. Mesmo quando os computadores substituíram as máquinas de escrever, com o acréscimo de duas dezenas de teclas ao tradicional teclado alfanumérico, mantive a capacidade de transformar toques digitais em texto sem tirar os olhos da tela.

Mas agora o golpe tecnológico parece ser fatal, com a introdução em nossas vidas de aparelhos sensíveis ao toque na tela – todos esses que têm um “i” minúsculo na frente do nome. O iPad, que é o brinquedo da hora, permite chamar um teclado em sua tela plana, mas sem espaço para que as mãos pensem por conta própria. Vamos virar todos, novamente, catadores de milho. Outro dia fiquei observando uma colega escrever no seu novíssimo equipamento e percebi que ela usava apenas os indicadores, sem desviar o olhar da tela.

Percebi, então, que estamos todos nivelados. Claro que alguns jovens, que já nasceram no ambiente digital, terão mais facilidade e rapidez para encontrar o caminho certo, mas duvido que alguém volte a redigir um texto sem olhar para as próprias mãos.

Tem gente que resolve o cubo mágico com os olhos vendados, mas, para isso, a sensibilidade nos dedos é tão fundamental quanto guardar os movimentos corretos na memória. Mas temos dedos demais para digitar o teclado virtual projetado na tela plana.

O polegar e o indicador são suficientes, tanto para abrir e fechar ícones quanto para dedografar caracteres.

Dona Nilda, a professora de datilografia, me obrigava a escrever com as mãos cobertas. Foram tantas repetições do asdfg çlkjh, que acabei gravando esta referência para digitar qualquer texto com os olhos fechados. Lembro-me, ainda, de uma poesia que escrevi dezenas de vezes para exibir minha capacidade de produzir um texto sem acompanhar os dedos com os olhos.

O autor era um tal Osmar ou Vilmar, só sei que terminava em mar: “Maria, flor da açucena/ era uma companheirinha/ de escola que outrora eu tinha/ eu pequeno, ela pequena./ Quando com a mão pequenina,/ ela o seu nome escrevia,/ eu lhe falava, Maria/ em mar meu nome termina,/ em mar o teu principia./ Eis porém que veio um dia,/ que o mar afastar-nos veio,/ e eu parti por mundo alheio,/ sem nunca mais ver Maria”.

Pobre Osmar!

E hoje eu acrescentaria: eis porém que veio um dia/ a tal de tecnologia/ e acabou com a poesia/ do tempo da datilografia.

Um fim de semana gostoso e um lindo feriado para você. Aproveite esse finzinho de outubro. Novembro vem ai a largos passos


30 de outubro de 2010 | N° 1650
ANTONIO AUGUSTO FAGUNDES


Mitos e lendas no Rio Grande

O que são mitos? O que são lendas? Por que o povo conta lendas e mitos?

Essas perguntas não são especiosas, ou gratuitas. Bem ao contrário: mitos e lendas são parte importante do folclore de um povo e estudá-los é fundamental para o aprofundamento na alma popular. Ninguém conhecerá um grupo social em profundidade sem intimar o seu folclore. Estudar mitos e lendas, portanto, é fundamental.

O folclore é aquela cultura espontânea, não oficial, dita erudita, ou escolástica. Trata-se de um complexo cultural altamente efetivo que se entranha em nós com tamanha naturalidade que não nos damos conta de sua força, a não ser quando tomamos deliberadamente consciência de sua presença.

O folclore nos confere um caráter político, nacional e regional, vai sem dizer. Em muitos países o folclore foi fundamental para resistir à devastação de sua cultura pelos vencedores da guerra. Nesse sentido, o exemplo do Japão após a II Guerra Mundial é bem expressivo.

Os mitos e as lendas são a história do país (expressão aqui tomada em seu verdadeiro sentido) contada pelo seu povo. Enquanto o mito é universal, a lenda é local. O mito é atemporal, a lenda se localiza no tempo obrigatoriamente.

Se o folclore é dinâmico, funcional, pragmático, utilitário mesmo, e o povo descarta prontamente o fato folclórico que perde sua função, então é evidente, até pela permanência na memória de seu povo, que os mitos e lendas cumprem um papel que insta a identificar e valorizar.

O povo conta mitos e lendas para fazer a sua autobiografia, para relatar as suas memórias. Trata-se de uma profunda e urgente necessidade de explicar-se. Os mitos e as lendas são, assim, um depoimento que o povo faz sobre si mesmo e para si mesmo. É como se estivesse diante do espelho. Trata-se, a rigor, de uma confissão, e a igreja descobriu a importância do confessionário muito antes que a psicanálise inventasse o divã do analista.

Depor sobre nós mesmo é catártico, e o folclore tem a vantagem sobre a mera profissão de ser sempre coletivo. Dá explicações, diz porquês, exorciza fantasmas. Um banco forrado de pelego numa roda de mate será sempre mais eficaz do que uma terapia em grupo em matéria de resolver os escaninhos da mente popular, embora o folclore esteja mais próximo de Jung do que de Freud.

Aliás, Arthur Ramos, em seus Estudos de Folk-lore, já teorizava o Inconsciente Folclórico a partir do inconsciente coletivo junguiano.


30 de outubro de 2010 | N° 16504
PAULO SANT’ANA


A carrocinha dos cachorros

Quando éramos pequenos e saíamos da Chácara das Bananeiras em direção à Olaria, onde hoje é o Hospital da PUC, enveredávamos por um paraíso de águas e de matas encravado em plena cidade de Porto Alegre.

E ficávamos inteiramente nus em cima dos barrancos, prontos para darmos as pontas, que era como se chamavam os mergulhos verticais sobre o arroio.

Na nossa volta, as árvores nos ofereciam pitangas, araçás, butiás, romãs e outras frutas.

No chão, corríamos o perigo de sermos picados pelas cobras, elas se desenroscavam pelos galhos e vinham para o solo em busca de insetos ou batráquios. Serpentes de todas as espécies. As vermelhas, nós chamávamos de corais. Tinham a mesma variedade de cores que as borboletas que alçavam voos tão pronto a gurizada tomava conta do território.

Porto Alegre era uma cidade contraditória, já se alçava a uma grande capital, mas, por exemplo, ali onde hoje é o Shopping Iguatemi, tinha uma fazenda com bovinos, caprinos, ovinos e suínos. Isto mesmo, poucas décadas atrás, o Iguatemi era uma fazenda.

Voltemos à Olaria. Os meus leitores não vão acreditar, o arroio corria entre dois barrancos. E a gente pegava o cipó de um lado e viajava até o outro, quando não nos dedicávamos a soltar o cipó no meio da travessia e mergulhar na água hospitaleira.

Era estupendo o espetáculo daqueles cerca de 20 garotos se refestelando numa verdadeira colônia de nudismo agreste. Dentro da Capital! Por isso é que amo esta cidade, fui testemunha de sua violenta e sublime transição entre campestre e urbana.

Depois, foram chegando os tratores, as retroescavadeiras, os operários. Nem percebíamos, guris ingênuos e travessos, que estavam roubando o nosso éden. E nos espantando para a áspera selva de cimento em que vivemos hoje.

Porto Alegre hoje tem 5 mil táxis. Naquele tempo, não havia 50. Nós quase não conhecíamos automóveis. Eles passavam distantes e raros lá ao longe, na Rua Aparício Borges. Nós os víamos como naves interplanetárias, algo distante da nossa realidade.

Quando se atreviam os veículos a se aproximarem de nossas casas, duas ou três vezes por ano, levados por estradas secundárias, eram ambulâncias ou camionetas da polícia. Só urgências podiam aproximar veículos de nosso povoado.

Isto tudo em Porto Alegre, gente, Capital!

Depois, as ruelas do nosso lugarejo passaram a ser invadidas amiúde por outros veículos estranhos: o caminhão que distribuía gelo, o caminhão que recolhia os cubos das latrinas.

E a carrocinha dos cachorros. Era uma carroça da prefeitura que caçava pelas ruas os cães vadios e sem dono.

Quando a carrocinha dos cachorros chegava, era um alarido entre a gurizada. Ela era cercada de vaias veementes, todos com receio de que ela recolhesse os seus cães por inadvertência.

Dizia-se que os cachorros eram trazidos para a Rua Cabo Rocha, onde havia uma fábrica de sabão. Os nossos queridos cãezinhos iriam virar sabão.

Belos e inesquecíveis tempos da nossa rica infância partenoense. Não voltam mais aqueles tempos, tanto desejávamos que voltassem e nos obrigassem a sermos puros novamente.

Infância querida. Nossas vidas ainda guardam as tuas marcas.


30 de outubro de 2010 | N° 16504
CLÁUDIA LAITANO


Entre a fartura e o semiárido

Vocês já pararam para pensar na movimentação de Porto Alegre nos últimos dias? É um tal de Prêmio Nobel dando palestra pra cá, Mikhail Baryshnikov dando piruetas pra lá, exposições na Fundação Iberê e no Santander Cultural de deixar o Guggenheim de queixo caído, vaquinhas espalhadas pela cidade, Black Eyed Peas hoje, Paul McCartney chegando daqui uns dias... Te cuida, Nova York!

Bom, mais ou menos. Essa vitalidade toda na área dos grandes espetáculos, dos ciclos de conferências internacionais, das exposições que viajam o mundo todo é, digamos assim, o lado “fartura” da nossa vida cultural – reflexo da economia estável do país e bancado pela parceria bem-sucedida entre bons gestores culturais, patrocinadores ousados (investimento em cultura é sempre um risco) e eventualmente até uma graninha pública de incentivo fiscal.

O lado “semiárido” da cultura gaúcha é aquele que depende não apenas dos orçamentos minguados dos governos e das prefeituras, mas de uma subjetiva “boa vontade” com o assunto, uma mercadoria simbólica que vai e vem ao sabor dos diferentes políticos eleitos, indo do fundo do poço a flashes de esperança, em ciclos de quatro anos que parecem recomeçar tudo sempre do zero – salvo as raras exceções de sucesso e continuidade administrativa, caso de Luciano Alabarse à frente do Em Cena e de Eva Sopher na direção do Theatro São Pedro.

Nos últimos anos, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre vem mantendo um equilíbrio cada vez mais instável entre a vocação para a fartura e as inevitáveis contingências de quem ganha o pão no semiárido. É uma orquestra de músicos qualificados, com uma trajetória ininterrupta de 60 anos e reconhecimento nacional.

Mas não consegue pagar a manutenção dos seus instrumentos, desativou sua Escola de Música e viu o sonho da sede própria se transformar em uma saga de idas e vindas e sucessivos adiamentos que seria cômica, se não tivesse se transformado em uma espécie de símbolo da letargia cultural do nosso semiárido.

O vínculo de Isaac Karabtchevsky com a Ospa desde 2003 (cerca de oito concertos por ano) pode ser interpretado como uma tentativa de manter a imagem da orquestra à altura de suas ambições. Nesta semana, o maestro anunciou sua decisão de migrar para climas mais amenos. Semiárido 1 x 0 Fartura.

Sem o prestígio internacional do maestro, o que a Ospa mais precisa agora é conquistar o prestígio local: administradores públicos que entendam a importância de uma orquestra, gestão criativa e ousada e empresários que comprem a sua causa, topando associar sua marca a uma das instituições culturais mais tradicionais do Estado.

O fato de o futuro secretário de Cultura ser um ex-músico da orquestra pode ser um belo símbolo, mas vai precisar ser muito mais do que isso. Para provar sua disposição de resgatar a porção semiárida da cultura gaúcha, o novo governador deve garantir para o secretário Luiz Antonio de Assis Brasil o apoio de um conjunto de gestores culturais eficientes nas diferentes áreas, além de orçamento digno e uma política cultural consistente.

Nenhum solista, por melhor que seja, substitui uma orquestra.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010


Jaime cimenti

Está difícil ser político

Não sei se em algum momento da História foi fácil ser político. Os brincalhões diziam e dizem que basta(va) ser meio preguiçoso, bem relacionado, mentiroso, rico, teatral, concordino e indeciso para se dar bem na política.

Claro que sempre houve homens públicos honestos, dedicados à comunidade e que dignificaram e dignificam a política e a democracia. Viva eles e viva Norberto Bobbio! Mas, atualmente, com tanta mídia, pesquisa, a coisa não está mole para os nobres administradores e parlamentares.

Se falam o que querem, se são sinceros, seja para dizer verdades ou mentiras, a coisa pode complicar para o lado de suas excelências. Se só dizem o que as pesquisas e os marqueteiros determinam, se só falam o que a galera quer ouvir, aí os coitados dos políticos são acusados de não ter opinião, de dizer só os clichês óbvios e de serem insípidos, inodoros e incolores como a água de antigamente. Se o cara fala difícil, profundo, é acusado de não ser entendido e de não alcançar a maioria das pessoas.

Se o político passa utilizando expressões de botequim e é simples demais, acusam o sujeito de baixar o nível da comunicação, de não ter “contiúdo”. Se o cara não faz cirurgia plástica ou implante de cabelos, é porque não liga para a própria aparência e não respeita o eleitorado. Caso se plastifique e fique se becando e se cuidando muito, usa creminho e brinco, é porque é vaidoso, pavão e metrossexual ou coisa que o valha.

Se o cara é equilibrado, gente boa, sangue bom, gente como a gente, até pode dar certo. Isso até começarem a reclamar que o cara não tem carisma, que é muito óbvio, que não tem luz própria e não seis mais o quê. Se o cara quer agradar todo mundo, não dá, não serve.

Se prefere atender a uma parte das pessoas, é porque é sectário. Está dureza, como se vê. Esse lance de falar, ficar quieto e se relacionar com os chatos dos outros, na real, vamos combinar, está difícil para todos nós, mortais humanos.

Mas a coisa está feia especialmente para políticos sem mandato. Em casa de político sem mandato só o vento bate na porta. Mas a vida continua e estamos aí para nosso eterno aperfeiçoamento individual e coletivo. Nós todos, claro, mas, principalmente, os integrantes da classe política, que deveriam ser mais perfeitos e ter mais classe, tipo assim, nós, seus fiéis e infiéis eleitores.

Bom fim de semana. Gostoso feriado pra você

Jaime Cimenti

Feira do Livro

A Feira do Livro é como o trigo e a Lindaura, a lendária secretária do Analista de Bagé. Ela dá uma vez por ano, mas é desses amores que ficam. A Feira já entra em campo com o jogo praticamente ganho, feito o Inter, ou, vá lá, até como o Grêmio, que hoje estou feliz, democrático e bonzinho como a Feira. Mas a Feira não é Grenal. Grenal pode dar empate.

A Feira jamais empata. Ela incentiva e desempata livros, projetos, patrocínios, conversas, amigos, azarações, paquerinhas, amores, negócios e otras cositas mas. Vai chegando a hora da Feira e aí os escritores, editores e livreiros se puxam porque têm prazos e tal.

Não por acaso a Feira começa em outubro, o melhor mês de Porto Alegre, depois que o inverno, as rinites, o frio, a chuva e os ventos se foram e tudo começa a desabrochar novamente na cidade. Lilás, amarelo, vermelho, passarinhos e cigarras dão aquela impressão de primavera eterna. O Umberto Eco e o Jean-Claude Carrière escreveram um livro intitulado

Não contem com o fim do livro, dizendo que o e-book não matará o livro impresso. Para ilustrar esta crônica e dar a ela um upgrade, alerto aos pouquíssimos inimigos dos livros: não contem com o fim da Feira!!!

Tudo bem, pode ser que daqui a alguns anos a gente compareça na Feira só por imagens, via holografia e que tudo seja virtual, digital, três ou quatro "D", sei lá. Pode ser que a Feira seja só pela internet. Não importa.

A Feira não acaba. A Feira é maior na mídia do que na real, dizem uns. Mas e daí? Qual o problema? Hoje em dia muitas pessoas, muitos acontecimentos, festas etc, também crescem sob as lentes de aumento da mídia. Deixem a mídia trabalhar livre, fazer o seu papel em paz, sem censura. O tempo e o Poder Judiciário (ai! ai!) aparam os exageros.

O melhor de tudo é ver a vida continuando na praça, com mil histórias contadas, escritas, publicáveis ou impublicáveis, com mil encontros, diálogos, abraços e com aquele infinito de palavras, imagens, pensamentos, realidades e fantasias que só a Feira é capaz de gerar.

O resto vai ser silêncio, mas só depois da Feira, óbvio. Uma pequena pausa de silêncio, só para dar uma descansadinha, aí depois vamos curtir os sons de rolhas de champanhotas em mais um fim de ano em Tramandaí, Atlântida, Rio, Capão, Punta, até em Porto mesmo. Salute! Aproveite a Feira!


29 de outubro de 2010 | N° 16503
PAULO SANT’ANA


Nada mais de cartas

A minha coluna de ontem, como era de se esperar, obteve resposta do presidente da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), Vanderlei Cappellari, que defendeu seus azuizinhos e cantou um hino de exaltação a todos os valores que podem levar à diminuição das mortes no trânsito.

Eu decidi e vou ver se cumpro não mais publicar carta de ninguém na minha coluna: foi tanto o protesto de acionistas da RBS, de dirigentes da empresa e de leitores contra as cartas de respostas que eu publicava, que cedi, daqui por diante não tem mais carta na minha coluna.

É que as pessoas pagam caro para assinar Zero Hora com o objetivo de me ler. E vez por outra davam de cara com uma carta, o que as decepcionava.

Então, não tem mais carta. Eu só quero ver como é que fica o direito de resposta, mas, por enquanto, vamos levando.

Entreguei a carta do presidente da EPTC à chefia da Redação, e ela está publicada, resumida, na página 2 desta edição.

Recebi dezenas de e-mails sobre a coluna de ontem. A metade deles rigorosamente me apoiando na restrição que faço aos azuizinhos. A outra metade energicamente discordando de mim e declarando que “tem mesmo de multar esses infratores e desordeiros do trânsito”.

Até fiquei surpreso com a metade que me apoiou: é que o povo brasileiro foi assaltado de um ímpeto punitivo ultimamente. Quer prender e arrebentar, quer condenar à morte, quer ver os presidiários sofrerem tortura e fome. Todo mundo, aterrorizado pela insegurança das ruas, quer vingança contra os criminosos.

Sabendo que têm metade da opinião pública a seu favor e só um colunista idiota contra, os azuizinhos saem todas as manhãs de seu quartel para multar a torto e a direito.

Ninguém pode ser punido pelo Estado sem um processo regular, com amplo direito de defesa.

No caso das multas de trânsito, não há lugar nenhum para a defesa dos multados. Eles podem jurar que são inocentes, que as juntas de julgamento não lhe concedem razão.

É uma inconstitucionalidade flagrante, atenta contra o bom senso. A palavra de um agente não pode ter predominância sobre a palavra do cidadão atingido pela multa. Mas só vale a palavra do agente.

É uma ditadura policialesca que tem o fim arrecadatório, que se vale do pretexto de salvar vidas para impor seu autoritarismo.

Quero, no entanto, ressalvar que sou radicalmente contrário à desordem no trânsito. Acho monstruoso o que fazem os que se excedem em velocidade e põem em perigo a vida dos outros, quando não matam ao volante.

Já cansei de escrever nesta coluna contra os motoristas que violam a faixa de segurança dos pedestres. Cheguei a escrever aqui um exagero que não retiro porque me amparo no Código de Trânsito subjetivamente: o motorista tem o dever de parar na faixa de segurança mesmo quando o sinal for verde para ele, se estiver atravessando um pedestre ou se aprestar-se somente a atravessar um pedestre.

Então, acho que meus leitores não me confundem com um anarquista. Me assenta melhor o adjetivo libertário do que anarquista.

Mas, enquanto houver voz em meu peito e inteligência no meu cérebro, não vou me calar diante daquilo que considero injusto.

Alguém em algum lugar há de erguer-se para defender os legítimos direitos dos cidadãos. Eu me ergo.


29 de outubro de 2010 | N° 16503
DAVID COIMBRA


Quem se importa com a corrupção?

Assisti ao debate na TV entre os candidatos a presidente, segunda passada. Fórmula inteligente. Soltaram os dois que nem dois cachorros brabos, não havia jornalista, nem sindicalista, nem líder de nada, nem povo perguntando.

O mediador não mediava; marcava o tempo e passava a palavra para um e outro. “Agora o senhor.” “Agora a senhora.” Eles estavam livres para dizer o que bem entendessem. Pensei: vai ser o melhor debate, os candidatos enfim têm chance de mostrar quem são e o que querem fazer no governo.

Que decepção.

Dilma e Serra passaram o tempo todo acusando-se de corrupção, insultando-se, diminuindo-se mutuamente e, assim, diminuindo a eleição. Inclusive usaram à exaustão a palavra da moda na campanha: malfeito. Não é mais roubo; é malfeito. Melhor assim. Mais gentil.

Vendo aquilo, cheguei a cogitar: e se OS DOIS tiverem razão? E se estivermos diante de consumados desonestos prontos para assenhorear-se do Estado e locupletar-se à tripa forra, eles e seus asseclas?

Ai de nós.

Mas não me deixei convencer pelos candidatos. Não concordei com eles. Continuo considerando-os honestos e dignos, ambos.

Se bem que, olha, isso de corrupção, tenho a sensação de que as pessoas já não se comovem mais tanto com isso. Trata-se de impressão, apenas, nada científico. É que não raro ouço alguém conformar-se: o roubo vai acontecer em qualquer governo, paciência. Claro, o indivíduo que rouba, o sujeito que pôs a mão nos maços, esse ficará estigmatizado.

O governo a que ele pertence, não. O PT foi o último partido de quem se esperava impermeabilidade à corrupção. Constatada corrupção no PT, os petistas brandiram indicadores eretos e lembraram: os outros também roubaram! Os outros concordaram. E todos ficaram felizes.

Logo, não faz diferença. Rouba-se. Roubar-se-á. Sempre.

Há 70 anos Monteiro Lobato fez uma previsão que o levou à cadeia, e que agora se cumpre com glória: a cada dia descobrem mais petróleo no Brasil. Vamos enriquecer, nós todos. Viraremos uma Arábia Saudita sem precisar vestir lençóis. Seremos uma alegre república plutocrata. Haverá dinheiro de sobejo para financiar os corruptos da nação inteira e ainda rasgar estradas e erguer do chão duro hotéis seis estrelas. Talvez até um governante tenha ideia de reservar algum para qualificar as pessoas, investir em educação. Talvez. Disso não se pode ter certeza.

Ontem, vi grupos de aparentes ex-lúmpens tremulando bandeiras do PTB numa esquina da Avenida Ipiranga. Eram eles e suas bandeiras onde se lia, tão somente: “PTB”. Supus que faziam campanha para algum candidato à Presidência.

Vendo-os tão entusiasmados senti uma vontade danada de votar no candidato do PTB. Mas aí me assaltou a dúvida: qual será mesmo o candidato do PTB? E do PMDB? Se me der gana de apoiar o candidato do PMDB, quem é ele? Como é difícil encontrar uma convicção nesta eleição.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010



27 de outubro de 2010 | N° 16501
MARTHA MEDEIROS


Máquina do tempo

Comecei a ler um livro que me conquistou em seus primeiros capítulos, até que desandou e eu o abandonei. A história se passa em 1908. É a história de um jovem nobre inglês que se apaixona por uma prostituta. Fica tão doido por ela, que resolve desafiar a família e abrir mão da sua herança para viver com a schifosa, mas, quando chega de mala, cuia e carruagem para morar no muquifo que ela habita, encontra seu corpo selvagemente esquartejado em cima da cama. O autor do crime: Jack, o Estripador. Um início de livro palpitante.

O rapaz volta para sua rotina aristocrática, mas nada o consola. Passam-se oito anos e ele não encontra graça na vida, até que resolve se suicidar. Já com a arma na mão, despedindo-se em pensamento de tudo o que deixará para trás, é surpreendido pela chegada de seu melhor amigo, que veio contar uma novidade bombástica: havia conhecido um cientista que inventara uma máquina do tempo. Inclusive ele, o amigo, já havia testado a geringonça, fazendo uma breve viagem de duas horas ao ano 2000.

Se ele havia conseguido passar um par de horas quase um século à frente, por que não tentar voltar meros oito anos para trás a fim de salvar a marafona da navalha de Jack?

Nesse ponto, larguei o livro. Mas você pode ir adiante, desde que volte para me contar o final. Chama-se O Mapa do Tempo, do espanhol Felix J. Palma.

Agora é conosco, caro leitor. Existisse uma máquina do tempo, para que ano você saltaria? Ou regrediria? Me fiz essas perguntas, e fiquei desolada com minha falta de curiosidade, pois acho que trocaria essa máquina por um iPad.

Se eu pulasse 20 anos no tempo, saberia o futuro das minhas filhas, o que tiraria toda a graça do trajeto, além de que contemplaria minha própria decadência: no, gracias. Se eu pulasse 200 anos, saberia se realmente faltará água no planeta e se o Brasil conseguirá virar uma potência mundial. Ok, na volta, renderia uma crônica que daria chamada de capa, mas quem confiaria na minha fonte?

Do futuro, quero distância.

Já uma viagem ao passado tem o mérito da correção. É interessante imaginar que podemos evitar acidentes que aconteceram, deixar de pronunciar o que deveria ter sido calado, mudar de atitude para evitar uma derrocada. Mas isso me soa mais como enredo de filme de ficção do que vida real, e sou viciada em vida real, incluindo os desacertos e todo o sofrimento que, não existindo máquina do tempo, tornam-se inevitáveis.

Concluí que não gostaria de ir nem um único dia para trás e nem um único dia para frente. Inventem uma máquina que faça o tempo parar, e aí sim, gracias.

Ainda que com chuva, que haja muito sol ai dentro desse coraçãozinho


27 de outubro de 2010 | N° 16501
DIANA CORSO


Maturidade

Era inevitável, mas eu não esperava que fosse tão cedo: fiz cinquenta anos. Não se trata de surpresa, mas sim de aceitação. Pisquei os olhos e passou uma década, foi rápido não por terem sido anos insignificantes, foram bons, talvez dos melhores da minha vida.

Tenho cabelos brancos desde moça e faz muito que deixei de cobri-los com tinta, mas só agora começo a temer que eles acabem combinando com o resto, pois a jovem que espero encontrar no espelho já não comparece lá.

Não sou uma exceção à regra: vivemos tempos de obsessão com a juventude, ninguém aceita fácil ser adulto, carecemos do tempo em que nos sobravam idealizações e promessas. A existência que nos toca parece curta para tudo o que esperamos dela, mas a dificuldade de reconhecer-se adulto talvez não se restrinja a isso.

A evocação do jovem que fomos um dia é nossa memória mais vívida e preciosa: conhecemos seu jeito, seus gostos, lembramos seus feitos.

Tudo o que diz respeito aos anos da adolescência nos causa certo frisson, um envolvimento que tornou-se perene com certas músicas (são as que sabemos a letra), programas de televisão, amigos, foi nessa época que construímos nosso estilo. Ninguém lembra de si criança sem um estranhamento, ao ver fotos da nossa da infância sentimos uma distância. Sabemos que estamos ali, mas não há familiaridade com a cena.

Nessa época estamos tão misturados com os pais, irmãos, e todas as figuras cuja história e traços acabam sendo os nossos, que não sentimos propriedade sobre essas memórias. Já na juventude, nos distanciamos da família e alguma individualidade adquirida nos liberta dessa alienação. Com o fim da infância, passamos a ser sujeitos da própria história, enquanto as crianças ainda funcionam como objetos da narrativa alheia, por isso a partir da adolescência lembramos mais.

É, portanto, essa jovem que conheço tão bem que ainda mora no meu olhar. Ela está na origem da mulher que me tornei, mas pouco me conscientizei da transformação, acho que andava muito ocupada.

O adulto, em seus anos de trabalhar, amar, procriar, reencontra essa dimensão da criança: envolve-se num ser-nos-outros, esquece-se de si enquanto constitui família e tenta provar-se no mundo.

Nessa época, a necessidade de reflexão e certo egoísmo que caracterizam os jovens ficam para trás. Porém, aos cinquenta os filhos estão crescidos, muitas decisões foram tomadas, e novamente há espaço para refletir como fazem os adolescentes, para reavaliar-se no espelho. Tempo de encontro consigo mesmo, deve ser isso que chamam de maturidade, além das ruguinhas.


27 de outubro de 2010 | N° 16501
PAULO SANT’ANA


Frutas e legumes

Ontem, escrevi sobre o drama emocionante do colega Glênio Reis. Mas vejam vocês os enigmas da comunicação: obviamente, eu queria dizer que “a realidade suplanta a ficção”.

Saiu na coluna exatamente o inverso: a ficção suplanta a realidade.

Escrevi errado. Ocorre, no entanto, que várias pessoas aqui na Redação leem minha coluna antes de baixar o jornal. Leem por curiosidade.

E, sempre que cometo um erro, estas pessoas me alertam e eu corrijo antes de baixar o jornal.

Pois anteontem ninguém notou meu erro e portanto não me corrigiram.

Saiu meu erro no jornal.

E o mais interessante: ontem, perguntei a inúmeras pessoas que leram aquela minha coluna e todas elas me disseram que não notaram meu erro.

Não é curioso este enigma da comunicação?

Para esquecer um grande amor, só mesmo arranjando um outro amor.

Foi o que fiz certa vez, perdi um grande amor e saí à procura de outro amor.

Quero dizer que talvez tenha valido a pena. Não porque o segundo amor tenha suplantado o primeiro, longe disso.

Mas porque a existência do segundo caso me proporcionou a saborosa diversão de compará-lo com o primeiro.

O primeiro sempre dá de goleada.

O meu amigo Darcy Alves, grande violonista de muitas e históricas serestas da cidade, está lançando seu livro de memórias.

O título é Vida nas Cordas do Violão, escrito pelo jornalista Paulo César Teixeira, vulgo Foguinho.

O lançamento com autógrafos será no dia 11 de novembro no bar Parangolé, na Rua Lima e Silva, 240, e na Feira do Livro, dia 14 de novembro, às 18h30min.

A gente dorme sempre sob os acordes do Darcy.

Se a uva fosse como a melancia, eu não passava por debaixo do cacho.

Se a bergamota fosse como o abacaxi, eu não a comeria para não dar-me ao trabalho de descascá-la.

E eu não entendo como é que tem gente que toma caipirinha de morango sem adicionar chantilly.

E nunca também entendi por que a gente tira a casquinha do amendoim torrado para comê-lo, se quando ele não está torrado a gente o come com a casca.

E eu, que ponho sal em quase todos os legumes, não consigo comer beterraba e chuchu com sal.

Por sinal, por vezes como chuchu com açúcar e abacate com sal.

Conversava eu ontem com uma colega no fumódromo da Zero Hora.

E ela me dizia: “Paguei R$ 220 por um ingresso para o show do Paul McCartney. Vale a pena, ele é um patrimônio da humanidade. O que me dói é que todos os dias, aqui no fumódromo, eu converso com outro patrimônio da humanidade e ele não me cobra nenhum tostão”.


27 de outubro de 2010 | N° 16501
DAVID COIMBRA


O protagonista

O primeiro personagem da História foi Sargão. Por “personagem” refiro-me a um indivíduo que, com sua personalidade e suas decisões pessoais, influenciou no rumo dos acontecimentos de uma comunidade. Ou de várias comunidades.

Se bem que muitos historiadores acreditam que a História não tem personagens. Para eles, as sociedades se movem em bloco, independentes dos indivíduos que as compõem. As coisas acontecem porque têm de acontecer, são inevitáveis consequências de evoluções econômicas, geopolíticas e filosóficas.

Ingenuidade ideológica dos historiadores.

Prefiro a sabedoria de Pascal, que dizia que, se o nariz de Cleópatra fosse menor, a História do mundo seria outra. A frase, de tão boa, mudou a imagem de Cleópatra em retrospectiva. Mil e seiscentos anos após sua morte, as pessoas passaram a achar que ela era nariguda, coitada.

Depois, agora, no século 21, um arqueólogo encontrou uma antiga moeda com a efígie de Cleópatra. A efígie, apesar de gasta e amassada, revelava uma imagem meio parecida com a cara da Madame Min, o que foi o suficiente para que os historiadores concluíssem que Cleópatra era um jaburu.

Perfeito para os historiadores. Uma Cleópatra feia reduz a força do seu papel na História. Ela não havia seduzido Júlio César e Marco Antônio com seus ardis de alcova, mas devido aos seus trunfos no jogo político internacional.

Outra ingenuidade ideológica dos historiadores.

Júlio César e Marco Antônio cometeram, por Cleópatra, desatinos que nenhum homem comete por um aliado que faça a barba e tenha gogó. Júlio César impôs a amante aos romanos escandalizados, levou-a para a Cidade Eterna, passeou com ela em triunfo pelas sete colinas e acenou que o filho dos dois, Cesário, seria seu herdeiro.

Já Marco Antônio jogou-se sobre a própria espada ao receber a falsa informação de que ela morrera. Morreu esviscerado e louco de paixão. Não. Cleópatra devia ser uma dessas mulheres que sabem agradar um homem. E seu nariz devia ser pequeninho, embora haja por aí muitas narigudas sensuais.

A beleza de Cleópatra, portanto, fez diferença para a História da Humanidade. Assim como a epilepsia do seu amante Júlio César; as dimensões diminutas do pênis de Napoleão; a feiura e a brabeza da mulher de Sócrates, Xantipa; a virgindade jamais rompida de Nietzsche; o homossexualismo de Lawrence da Arábia; o fato de Hitler ter sido reprovado na escola de arquitetura de Viena; e os furúnculos de Marx, pelos quais os capitalistas pagaram caro, como ele próprio ameaçou, escrevendo em seu quarto na cinzenta Manchester da Revolução Industrial.

Tudo isso fez diferença, bem como a energia sem fim de Sargão. Sua mãe era uma prostituta do templo; seu pai, desconhecido. Quando Sargão nasceu, cerca de 4.400 anos antes de Cristo, sua mãe teve de livrar-se dele para sobreviver como servidora do templo. Como? Ele próprio contou:

“Minha humilde mãe concebeu-me; em segredo me pôs no mundo. Colocou-me numa cesta de vime; com breu fechou minha porta”.

Sargãozinho foi encontrado às margens do rio por um operário, que o criou como filho. Admitido no palácio real na função de camareiro, tornou-se favorito do soberano, até derrubá-lo, assumir seu lugar e tornar-se “Rei do Universo”.

Como você deve ter percebido, a Bíblia inspirou-se na história de Sargão para contar a história de Moisés. Não foi o único plágio bíblico: a lenda do Dilúvio também faz parte da crônica dos sumérios, povo conquistado por Sargão. O Noé sumério chamava-se Ziusudra.

Ele também construiu uma arca, calafetou-a com breu, salvou-se com sua família e repovoou a Terra. Alguns cientistas fazem fé nessa versão. No fim dos anos 20, o professor Leonard Woolley assegurou ter descoberto provas de que o dilúvio foi uma enchente do Eufrates ocorrida em 3.500 antes de Cristo.

Enfim. Sargão. Foi ele o primeiro conquistador, o homem que, com suas qualidades pessoais, dominou todas as cidades-estado da Mesopotâmia e transformou-se, a rigor, no primeiro imperador do mundo.

A partir de Sargão, outros passaram a perseguir a glória de comandar os destinos de seus contemporâneos. De TODOS os seus contemporâneos. E assim a História da Humanidade deu uma virada. As grandes guerras de conquista estavam começando.

Isso ocorreria de qualquer forma, com ou sem Sargão? Um outro Sargão faria o mesmo em seu lugar? É possível. Mas também é possível que, se o fizesse, fizesse de outra maneira. E tudo seria desencadeado para outro caminho que não o tomado pelo mundo ocidental.

Os personagens existem. Eles fazem o que a maioria mediana não consegue fazer. Há um respirando entre nós: o argentino D’Alessandro. Sozinho, ele mudou o Gre-Nal de domingo passado. Sozinho, ele transformou em realidade o que parecia improvável. Ao contrário de um talentoso porém displicente Douglas, D’Alessandro compreendeu o significado de um Gre-Nal. E fez o que tinha de fazer um autêntico protagonista da História.

Fez a diferença.

terça-feira, 26 de outubro de 2010



26 de outubro de 2010 | N° 16500
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Depois do amor

Acordo em meio à madrugada e há um som que me chega do coração das trevas. Não tardo a descobrir que é um angustiado, ansioso canto de sabiá.

Tento dormir outra vez, mas sua litania me impede. Sua opressão é tão audível, que se comunica à solidão da noite, aos astros, ao universo.

Sei que agora é primavera e que os pássaros repovoam o mundo. Sei também que vivo entre grandes jardins, o dos Chaves Barcellos, o do Solar dos Câmara, o da Praça da Matriz. Sei que, mesmo entre as árvores que pontuam a Rua Duque e a Rua João Manoel, há moradas de aves habitadas.

O que não entendo é a ânsia e a angústia do solo deste sabiá. Sempre pensei que a alada espécie despertasse cedo para saudar o dia. Sempre pensei que sua melodia fosse uma exaltação à luz.

Agora sei que não. Se nossa terra tem palmeiras onde canta o sabiá, aqui por perto não há nenhuma. Há jacarandás, por estes dias vestidos de lilás, há flamboyants ainda à espera de sua rubra floração, há outras espécies menos votadas, aguardando o seu pontual esplendor.

E há esse sabiá solitário, que não saúda o dia que virá, que não exalta a luz em que imergiremos todos, mas que se limita a participar a seu ninho que está atento e vigilante.

É essa a sua missão: a de transmitir à jovem fêmea e aos filhotes a mensagem de que nenhum perigo lhes sobrevirá.

É por isso que entoa esse cantar aflito, agoniado, em direção ao ninho. É por essa razão que compõe uma sinfonia marcada por uma cadência atormentada.

Mas isso durará pouco.

Isso se estenderá pelo espaço de uma primavera.

Logo virá dezembro e as noites repousarão em lenta calmaria.

Logo virá o verão, e terá cessado o cantar angustiado e ansioso do sabiá, e todas as noites serão calmas e silentes, como o corpo de uma mulher depois do amor.


26 de outubro de 2010 | N° 16500
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Nós, que contamos histórias

Atenção, muita atenção: livro imperdível na praça, para qualquer leitor interessado em viajar pelos motivos mais profundos da existência da literatura. Livraço, massagem no cérebro, alargamento de horizontes.

E tudo isso numa forma de ensaio relativamente livre, que combina otimamente com a matéria. Ainda não disse nem nome, nem título: é A Espécie Fabuladora (com o subtítulo que não é um exagero: Um Breve Estudo sobre a Humanidade), de Nancy Huston, editado pela L&PM com tradução de Ilana Heineberg – e minha primeira sugestão de compra na Feira que vem vindo aí.

O livro é uma paciente (embora breve) indagação sobre a força da literatura enquanto uma marca da natureza humana. Somos a única espécie da natureza que sempre se conta histórias; não há grupo humano, de qualquer espaço ou época, que não tenha criado e mantido um conjunto de relatos para explicar o mundo, organizar a vida e transmitir o sentido das coisas aos que vêm chegando.

A autora, romancista consagrada (li dela o belo e pungente Marcas de Nascença, também editado pela L&PM), passeia por vários dos argumentos que o senhor e eu alguma vez até já vimos ou ouvimos em torno do tema; mas ela costura tudo por um interesse bem pessoal, que nos aproxima do tema de modo irresistível: conversando sobre literatura com presidiárias, ouviu de uma delas uma pergunta perturbadora: “Para que inventar histórias quando a realidade já é tão extraordinária?”.

Aí é que tá: a escritora não apenas aceitou a provocação como encontrou um caminho argumentativo singular e eficaz, que mostra a força da narrativa, para o bem da espécie, como se pode ver nos incontáveis relatos existentes, mas para o mal também, como ocorre com aqueles leitores de um único livro ou, pior ainda, com aqueles leitores que tomam certos relatos como de origem divina e por isso como mandatos, não raro como álibi para matar.

Nancy Huston, sem doutrinarismo algum, olha as coisas como uma humanista radical, que concebe a figura divina desde que esta também seja compreendida como criação humana – uma perspectiva freudiana arejada.

O texto termina com uma defesa do romance que é um refrigério para a alma de leitores em pânico, como é meu caso, de vez em quando, ao constatar o avanço da imagem e da instantaneidade sobre e contra a palavra e a reflexão:

o objetivo da ficção literária chamada romance não é ser mais forte que a realidade, mas sim fornecer outro ponto de vista sobre ela – ele não quer ensinar o certo e o errado, como fazem as ficções familiares, religiosas e políticas, mas sim mostrar a verdade dos seres humanos, “uma verdade sempre mista e impura, tecida de paradoxos, questionamentos e abismos”. Assim simples.


26 de outubro de 2010 | N° 16500
PAULO SANT’ANA


O gigante Glênio Reis

Cada vez mais me convenço de que a ficção suplanta a realidade, depois do que vi acontecer sábado.

Eu não vou aumentar nem diminuir nada do que ocorreu. Tim-tim por tim-tim, vou contar exatamente o que aconteceu.

Eu estava em meu carro, sábado passado, às 21h30min, quando ouvi no rádio a abertura do programa Sem Fronteiras, apresentado pelo Glênio Reis, um veterano radialista, o mais antigo dos radialistas gaúchos, uma legenda do rádio de todos os tempos e da televisão de antigamente.


Pois bem, preparem-se para serem eletroplessados por esta narrativa.

O Glênio Reis começou assim o programa que ele apresenta há vários anos todos os sábados, eu ouvi com estes ouvidos precários e tecnologizados: “Queridos ouvintes. Estou cumprindo um doloroso prazer ao apresentar este programa: é que faleceu hoje, às 4h, nesta madrugada, a minha querida companheira, minha esposa Anésia Pereira dos Reis, com 82 anos, com quem eu sou casado há 53 anos.

E antes de morrer, desenganada, ela me fez um pedido: o de que eu não faltasse a este programa no dia da sua morte e lhe dedicasse no ar a música As Rosas não Falam, na voz do seu autor, Cartola. E eu vim aqui para apresentar este programa até a meia-noite e fazer esta homenagem à queridinha Anésia, minha comparsa nestes últimos 53 anos”.

Não preciso dizer que eu, como certamente muitos ouvintes, àquela altura, estávamos com os olhos marejados.

Quando voltou depois da música, o Glênio prosseguiu: “Minha querida mulher será cremada no Crematório São José, amanhã, às 9h. Sei que vou ter forças, embora disso duvide, para apresentar este programa inteiro e assistir à sua cremação nove horas depois. Os ouvintes devem imaginar o que estou sentindo, durante mais de 50 anos fui casado com Anésia, ela foi o único e inesquecível amor da minha vida”.

E o Glênio Reis seguiu apresentando o programa, com todos os seus quadros.

Confesso-lhes que eu, o João de Almeida Neto e sua mulher, Jane Vidal, estávamos pasmados, na residência destes últimos, para onde me dirigia quando ouvi a infausta notícia.

Dois octogenários que se amaram por 53 anos, ambos amantes da música. Ele, radialista pertinaz e heroico. Ela, dona da casa dele.

Foi um momento crucial da noite desse último sábado.

Entre outras coisas, este episódio lembra um ditado corrente entre os artistas de teatro e shows em todo o mundo: “O espetáculo tem que continuar”.

O Glênio Reis continuou valentemente com o seu espetáculo, o último que lhe restou numa vida de tantas façanhas artísticas, o Sem Fronteiras, que ouço sempre, todos os sábados.

Mas o que me deixou ainda mais estupefato e emocionado foi um fecho que o Glênio deu no seu programa: “Daqui a pouco, às nove horas da manhã deste domingo, minha mulher estará sendo cremada.

E para mim será particularmente chocante e emocionante a cerimônia de cremação, porque exatamente neste domingo das exéquias finais de minha mulher queridinha eu teria de comemorar o meu aniversário. Exatamente neste domingo triste e funéreo de 24 de outubro, eu completo 83 anos de idade”.

É de cortar o coração!


26 de outubro de 2010 | N° 16500
MOACYR SCLIAR


Adeus, Maria Candelária

Numa época, fez grande sucesso no Brasil a marchinha carnavalesca, do compositor Blecaute, que falava de uma certa Maria Candelária. Quem era? “É alta funcionária”, informava a letra, acrescentando que Maria Candelária tinha entrado no serviço público “de paraquedas”, ou seja, por algum favor político.

A seguir, entrava em detalhes sobre a atividade da Maria Candelária, que “trabalhava de fazer dó”. O expediente começava ao meio-dia; à uma da tarde Maria Candelária ia ao dentista, às duas, ia ao café, às três à modista; às quatro assinava o ponto e dava no pé. Concluía Blecaute: “Que grande vigarista que ela é”.


A popularidade da música é explicável: corresponde à imagem que, desde há muito tempo, os brasileiros têm do funcionalismo público, uma imagem que vale a pena lembrar às vésperas do 28 de outubro, Dia do Funcionário Público, uma data instituída em 1943 pelo presidente Getúlio Vargas.

A imagem é exatamente esta: de uma pessoa que conseguiu uma boquinha, que é bem paga com dinheiro público, mas que não faz nada. Um estereótipo, que, como todos os estereótipos, é uma mistura de observação da realidade com preconceito puro e simples.

Não há dúvida de que no Brasil a fronteira entre público e privado sempre foi tênue, algo que nos lembra as capitanias hereditárias. Não são poucos os políticos que tratam a administração como se fosse propriedade deles.

A desculpa para isso está sintetizada na famosa expressão cargos de confiança, vagas que são preenchidas pela simples indicação do titular de uma pasta ou de alguém a ele ligado. É claro que, muitas vezes, esta é a solução para a falta de pessoal que é crônica no serviço público brasileiro; não são poucos os técnicos experientes que, à falta de um dispositivo melhor, foram recrutados dessa maneira.

Mas vejam o paradoxo da própria expressão: se existem cargos de confiança, o que são os outros? Cargos de desconfiança? Desta maneira, introduz-se uma cisão na esfera pública, entre as lampeiras Marias Candelárias e o resto. Que, aos olhos de muitos, acabam sendo incluídos no rótulo geral da vagabundagem. Tremenda injustiça. Ao menos na área em que por muitos anos trabalhei, a saúde pública, isso não era verdade.

Vi gente labutando arduamente em postos de saúde, em hospitais, em campanhas de vacinação, ganhando salários ínfimos, lutando contra a falta de recursos. Era gente que acreditava no que fazia, que transformava a saúde da população em uma verdadeira causa.

Alguns dirão que se trata de casos excepcionais, que trabalho de verdade só na área privada. De novo, isso não corresponde à realidade. Temos empresas públicas que, sob qualquer critério de mercado, são bem-sucedidas e que atraem inclusive investidores estrangeiros. Esta discussão é importante, porque estamos às vésperas de uma troca de governo.

A nova administração certamente manterá o rumo geral da economia, mas terá de fazer reformas diversas: a tributária e outras. Seria muito importante que a reforma do serviço público fosse incluída nesse rol.

A palavra-chave aí é profissionalização. E profissionalização se consegue mediante um processo de seleção transparente e rigoroso e mediante uma carreira que envolva estímulos para o aperfeiçoamento pessoal.

Quanto à Maria Candelária, ela pode continuar indo ao dentista (saúde oral é coisa importante), ao café, à modista, mas de preferência financiada por um marido rico. No Brasil que os brasileiros querem, não há lugar para Marias Candelárias no serviço público.

Que Tarso Genro é um expoente da cultura brasileira e gaúcha, todo mundo sabia. Agora, ele acaba de confirmá-lo, com a indicação de Luiz Antonio de Assis Brasil para secretário de Cultura. Grande nome, antecipando uma grande gestão.

domingo, 24 de outubro de 2010


FERREIRA GULLAR

Os acasos da manhã

Se um de nós tivesse saído de casa alguns minutos antes ou depois, não nos teríamos encontrado

ERA DOMINGO e, depois de alguns dias cinzentos, vi pela janela da sala que a manhã estava clara e iluminada. Embora não tenha, aparentemente, qualquer motivo para cair na fossa, nada impede que, de repente, na manhã clara, a alma se acinzente. Por isso, antes que isso ocorresse, tratei de sair de casa e ir andar pela avenida Atlântica, a uma quadra e meia de onde moro.

Não faço cooper, mas andar é o recurso de que lanço mão quando, não sei por que, a vida perde sentido. Nessas horas, meus amigos, não há teoria que resolva, já que é a cabeça mesma que diz não.
Por isso a única alternativa é sair andando, andando à toa, já que também não há aonde ir, ou seja, nenhum destino interessa.

Andar, porém, se pode andar sem destino, deixando por conta das pernas o rumo a seguir. Hoje, no entanto, não foi esse o caso: decidira sair deliberadamente para andar ao sol, sentir no rosto a brisa do mar, gozar do prazer de estar vivo.

Pois bem, quem me lê e presta alguma atenção no que digo, já deve saber que, para mim, o acaso é um fator decisivo em nossa vida e em tudo, das menores às maiores coisas, da topada no meio-fio ao poema que se escreve.

Mas faço questão de dizer que o acaso não é tudo, uma vez que ele só contribui para nossa vida quando atende a alguma necessidade. Isso para os acasos sérios, o que não é o caso da topada no meio-fio, a menos que nos destronque o pé.

Já o amor verdadeiro pode ser fruto da conjugação feliz de acaso e necessidade. Por isso, você diz: "Estava escrito"; "Foi Deus quem a pôs no meu caminho".

De fato, a conjugação de acaso e necessidade parece ter algo de milagre. Só que não pensei em nada disso quando desci no elevador, saí pelo portão do edifício e cheguei à rua, batida de um vento matinal. E foi assim, quase flutuando, que alcancei a avenida Atlântica, onde banhistas e ciclistas animavam a paisagem.

E eis que, ao chegar ao calçadão, sou cumprimentado por um homem de bermudas e camisa desabotoada que me diz: "Senhor Gullar, levei sua crônica para Buenos Aires e o pessoal ficou muito feliz".

Falava com leve sotaque portenho; pergunto a que crônica se referia e ele disse que era uma sobre o apartamento em que eu morara em Buenos Aires durante o exílio. Ah, sei, disse eu, na avenida Honório Pueyrredón.

O acaso não é senão a ocorrência de alguma probabilidade. Aquele senhor, possivelmente argentino e que mora no Rio, saíra de casa, como eu, para andar à toa pela praia e se deparara, por acaso, comigo, autor de uma crônica que se referia à sua cidade, ou melhor, a algo que ocorrera eventualmente num dos prédios de uma de suas inumeráveis avenidas.

Se um de nós dois tivesse saído de casa para aquele passeio, alguns minutos antes ou depois, não nos teríamos encontrado e eu jamais saberia do que me contara. Nem esta crônica estaria sendo escrita.

"Recortei sua crônica e a levei para o síndico do edifício onde o senhor morou. Ele disse que já ouvira falar de um exilado brasileiro que residira ali."

Sempre me encanta essa magia dos acasos da vida. Veja você: uma editora argentina decidira lançar a tradução de meu "Poema Sujo", escrito naquele apartamento de Buenos Aires em 1975. Como não viajo de avião, meu amigo Roberto Viana convenceu-me a ir até lá de carro para o lançamento do livro e me levou, claro, até o edifício onde o poema nascera.

Filmou-me à porta de entrada, que estava fechada, sem que, lógico, o síndico nem nenhum dos moradores soubesse do que ali ocorria, naquela tarde de 10 de setembro, aliás, dia de meu aniversário. Agora, todos o sabem, porque a referida crônica foi emoldurada e posta no hall de entrada.

Despedi-me do simpático argentino e segui meu passeio sem rumo, quando fui abordado por três garotos e um deles me perguntou: "O senhor não é o Paulo Goulart?". Já habituado a esse tipo de confusão, apenas sorri. E o outro rapaz: "Nada disso, cara, ele é o João Goulart... Não, não, é o Goulart de Andrade. O senhor não é o Goulart de Andrade?".

Dou um adeusinho a eles e cruzo a pista da avenida em direção ao mar. Sou mesmo aquele cara famoso que não se sabe quem é.

DANUZA LEÃO

Agruras pessoais

Sei que existem pessoas com problemas mais graves do que o meu, mas sempre há um começo

ELEIÇÃO É ÓTIMO, mas quatro semanas entre o primeiro e o segundo turno é tempo demais. Apesar de não conseguir pensar em outra coisa, tive minha atenção desviada hoje por dois probleminhas teoricamente banais, mas que estão me levando à loucura.

Recebi duas cartas que me tiraram do prumo. A primeira veio da Receita Federal, querendo que eu explique detalhes da minha declaração de renda de 1996. Positivamente, não dá. Pago meus impostos em dia, levo minha vida absolutamente dentro das leis, mas ter que explicar detalhes de meus rendimentos em 1996 é acima da capacidade de qualquer ser humano. Só chorando.

Agora, a segunda carta, da Oi, mas antes vou explicar: já tive um celular e desisti dele há mais de um ano. Agora tenho dois telefones fixos e minhas contas de telefone são pagas em débito automático.

Pois a segunda carta era da Oi, cobrando quatro contas de um telefone móvel que não tenho, supostamente não pagas, que somadas vão a R$ 800. Você já tentou reclamar qualquer coisa de uma operadora de telefone? Então, considere-se uma pessoa feliz. São gravações e mais gravações, em que sua atendente "virtual", com muita competência, leva qualquer um às raias da loucura.

Esta manhã, tomei um tranquilizante e fui à luta. Luta essa que roubou 67 preciosos minutos de minha vida. Consegui, com muita paciência, obter duas informações: a primeira, é que antes de qualquer coisa eu deveria ir ao banco e pagar as quatro contas de um celular que não é meu; para isso, seria preciso anotar o número do código de barras de cada uma.

Peguei uma caneta e anotei o de uma delas: vou contar, e não pensem que estou mentindo. O número é 8461 000000 1301 2601 1324 2178 7063 0027 4709 6777 00000 9. Esse é o número de uma das contas, e são quatro, que tal?

Segunda informação: nada poderá ser ao menos discutido antes que as contas sejam pagas. E, se não pagar, estou ameaçada - por escrito - de cortarem meus telefones e meu nome ir para o SPC, Serasa, e "outros", que tal de novo? Só chorando.

Não quero pagar R$ 800 que não devo, e só poder discutir depois; não tenho forças nem físicas nem psicológicas para ir ao Procon; e odeio a Oi. O que faço? Contrato um advogado? Vai custar mais caro do que pagar as contas, e esse não será o fim da novela. Corto os pulsos? Me atiro pela janela ou jogo um saco cheio da superbactéria na sala da diretoria da Oi?

Sei que existem pessoas com problemas muito mais graves do que o meu, mas por mais difíceis que sejam os caminhos, sempre há um começo - e aí, de alguma maneira, eles serão resolvidos.

Mas não acredito que se pagar vou ter sossego, pois as contas vão continuar chegando; e como explicar à Receita meus rendimentos em 1996, se não sei do paradeiro da contadora que cuidava dos meus papéis em 96?

Estou inclinada a metralhar os responsáveis pela Oi, mas tenho medo de chegar na sede da companhia, ser atendida por um robô daqueles inflados, e que da sua boca saia mais uma gravação que vai fazer com que eu perca para sempre meu juízo.

PS: O país está uma bagunça generalizada. Desde que Lula entrou em campanha feroz para eleger Dilma, desrespeitando todas as leis, o Brasil está à deriva. E ainda não foi tomado o depoimento de Erenice (só depois do segundo turno).

danuza.leao@uol.com.br

ELIANE CANTANHÊDE

Lula

BRASÍLIA - Lula continua batendo recordes de popularidade, sua candidata é franca favorita no próximo domingo, PT e PMDB têm a perspectiva de controlar o país por 20 anos. Mas, paradoxalmente, Lula sai da eleição menor do que entrou.

Surpreendem o ego, a falta de limites, o personalismo. Quanto mais esperava-se o estadista, mais cedeu ao populismo oportunista. Quanto mais o momento exigia grandeza, mais apequenou-se.

Bastou a eleição de Dilma ser dada como certa no primeiro turno, e lá foi Lula, vermelho, com ar de ódio, xingar a imprensa e conclamar o extermínio de adversários. Bastaram as pesquisas prevendo a vitória no segundo turno, e lá foi Lula, vermelho, com ar de ódio, acusar Serra de encenar "uma farsa", uma "mentira descarada".

Duplo erro: tentou transformar a vítima em réu e estimulou a militância petista a cair de pau.

Lula deveria ler as pesquisas e aprender com elas que Dilma e o lulismo vencem graças à votação maciça nas regiões e áreas mais manipuláveis, onde a Arena, o PDS e o PMDB já foram reis.

Enquanto isso, crescem entre os mais escolarizados a desilusão e a condenação ao estilo raivoso, à cultura da vitimização, às práticas de dossiês e falsificações da verdade, à ocupação do governo e das estatais como se fossem donos do país. É esse tipo de reinado que Lula almeja?

Com o governo bem-sucedido e 80% de apoio, cabia a Lula investir em princípios, na melhor prática eleitoral e na educação política dos brasileiros, não sucumbir à esperteza com Collors e Sarneys; confraternizar com as ditaduras de Cuba e Irã; cooptar as centrais sindicais e os movimentos sociais; jogar o governo, as estatais e a figura do presidente sem pudor na campanha.

Na reta final do primeiro e do segundo turno, Lula, com seus excessos, mais prejudicou do que ajudou Dilma. Quanto mais atua assim pela sua candidata, mais trabalha contra a própria imagem. Governos e eleições passam, a história fica.

sábado, 23 de outubro de 2010



24 de outubro de 2010 | N° 16498
MARTHA MEDEIROS


Contigo e sentigo

Sabemos como foi uma paixão pelo modo como ela termina. Essa frase está no livro O Passado, do argentino Alan Pauls, mas não precisaria estar em livro nenhum para que a avalizássemos. A maneira como se coloca o ponto final nas relações deixa evidente o verdadeiro espírito que norteou o que foi vivido.

Que tipo de final desejamos? De preferência, nenhum. Todo mundo quer um amor para sempre, desde que ele se mantenha estimulante, surpreendente, alegre, à prova de tédio. Ou seja, um amor miraculoso. Como milagre é do departamento das coisas impossíveis, é natural que as relações durem alguns anos ou muitos anos, e depois acabem.

Lei da vida. Sofre-se o diabo, mas raros são aqueles homens e mulheres que nunca passaram por isso. O que fazer para amenizar a dor? Talvez ajude se analisarmos o final para entender como foi o durante.

Há os finais chamados civilizados. Ambos os envolvidos percebem o desgaste do relacionamento, conversam sobre isso, tentam mais um pouco, conversam novamente, arrastam a história mais uns meses, veem que nada está melhorando, aguardam passar o Natal e o Ano-Novo, fazem uma última tentativa e então decidem: fim.

Lógico que é dilacerante. Não é nada fácil fazer uma mala, dividir os pertences e estipular visitas aos filhos, quando há filhos. A solidão espreita e assusta, e um restinho de dúvida sempre surge na hora do abraço de despedida. Mas foi um “the end” sem derramamento de sangue. Como conseguiram a façanha?

Provavelmente porque sempre escutaram um ao outro, porque não fizeram da relação um campo minado, porque as brigas eram exceções e não regra. É possível também que a relação fosse mais racional do que animal: ternura é bem diferente de paixão. Mas, enfim, mesmo sofrendo com a ruptura, deram a ela um fim digno, condizente com o que de bacana viveram juntos.

Agora vamos ao outro tipo de separação. Tire as crianças da sala.

A relação acaba geralmente depois de um ataque de ofensas, de uns “não aguento mais”, de muita choradeira, de cortes na alma, de desconstrução total, de confissões gritadas: “Quer saber? Eu fiquei com ela sim!”. Garanto que se amam mais do que aquele casal que se separou assepticamente, mas perderam toda a paciência um com o outro, e também todo o respeito, e atingiram um limite difícil de transpor. Por que, depois desse quebra-quebra, não tentam um papo conciliador? Ora, porque não fazem a mínima ideia do que seja isso.

Sempre foram atormentados pelo ciúme, pelas implicâncias diárias, pelas oscilações de humor, pela alternância de “te amo” e “te odeio”. Terminam falando mal um do outro para quem quiser ouvir, e não raro aprontam umas vingançazinhas. Tudo muito, muito longe do sublime.

Tive um vizinho de porta que gritava com a namorada ao telefone, sem se importar que o prédio inteiro ouvisse: “Não sei o que fazer! Fico mal contigo e fico mal sentigo!”. Sempre achei essa situação desoladora, e nem estou falando do português do sujeito. É duro ter apenas duas alternativas (ficar ou ir embora), e ambas serem terríveis.

Quando acaba docemente, é sinal de que você foi feliz e nada há para se lamentar. Se acaba de forma azeda, é porque a relação era mesmo uma neura e tampouco se deve lamentar. Nos dois casos, a performance final ao menos ajuda a compreender o que foi vivido e a se preparar para um novo amor que não acabe nunca. Em tese.

Na próxima terça, dia 26, participarei do Conversa no Praia, onde serei entrevistada por Tulio Milman sobre esse e muitos outros assuntos que envolvem as relações humanas, e em seguida autografarei meu novo livro de ficção, Fora de mim, na Livraria Saraiva. Tudo começa às 19h e é aberto ao público.


24 de outubro de 2010 | N° 16498
VERISSIMO


Mordiscar não é morder

O amor, sabem todos, tem muitos inimigos. O mau hálito, por exemplo. A maior história de amor de todos os tempos teria sido outra se Romeu tivesse mau hálito, e nem toda a poesia de Shakespeare o ajudaria.

– Meus lábios são dois peregrinos rubicundos que buscam o santuário dos seus...

– Terão eles queixa se eu lhes oferecer, em troca...

– O quê? – Uma bochecha? – Pô, Julieta!

O amor também requer, para ser perfeito, um senso de proporção. Pouco amor não é amor, é amizade ou apenas simpatia. Amor demais pode virar obsessão ou tara. O verdadeiro amor está no equilíbrio. Mas como reconhecer esse equilíbrio ideal? Como mantê-lo, através dos anos, evitando que despenque para um simples convívio resignado ou evolua para a loucura e o crime passional? O descontrole também é um dos inimigos do amor.


Tomemos o caso do Odivar e da Leonor. Ele representante farmacêutico, ela funcionária pública. Uma coisa que a Leonor fazia e que deixava o Odivar todo arrepiado era mordiscar a sua orelha. Começara durante o namoro. Primeiro no cinema, no escuro.

Depois, como namoro assumido, em qualquer lugar. Volta e meia a Leonor mordiscava a orelha de Odivar. Às vezes fazia “rmm, rmm”, grunhia como um cachorrinho, para acompanhar a mordiscada, mas quase sempre era em silêncio. Leonor puxava o lóbulo da orelha do Odivar com os dentes, e Odivar ficava todo arrepiado. Mesmo depois de casado, ficava arrepiado. Até que – o tempo sendo, também, um terrível inimigo do amor – começou a não ficar. E um dia...


Quando entraram na delegacia o quadro era o seguinte. O Odivar com uma orelha sangrando, a Leonor com um hematoma no rosto onde o cotovelo do Odivar a acertara. Os dois falando ao mesmo tempo, até o delegado mandar que parassem e passar a interrogá-los separadamente. Começando com a Leonor. O que acontecera?

– Eu estava mordiscando a orelha dele e...

– Mordiscar não é morder! – interrompeu Odivar.

O delegado mandou-o esperar sua vez. E mandou Leonor continuar.

– Eu estava mordiscando a orelha dele, doutor, como sempre faço, e ele me acertou uma cotovelada. É uma coisa carinhosa que eu faço doutor, e que ele sempre gostou. Mas desta vez me deu uma cotovelada.

Odivar começou seu depoimento dramaticamente. Mostrando a orelha ensanguentada.

– Eu vou levar pontos! Isto aqui é uma mordiscada? É uma coisa carinhosa? Mordiscar não é morder! Se eu não tivesse dado a cotovelada ela tinha arrancado a minha orelha!


O delegado filosofou. Mordiscar não é morder, e é. É uma mordida metafórica. Uma mordida mitigada. Isso. O delegado gostava de “mitigada”. A fronteira entre a mordida mitigada e a mordida real era a fronteira entre o amor e as suas deformações pelo tempo: o ódio, o tédio, o desequilíbrio. A Leonor tinha alguma razão para morder a orelha do Odivar até sangrar?

– Nenhuma! Nenhuma! – gritou o Odivar.

Tinha uma: ele não ficava mais todo arrepiado, como antes. Mas isso Odivar não disse.

– E então, dona Leonor?

– Não mordi. Mordisquei. E, sei lá, me descontrolei.

– Não mordisque mais, dona Leonor.

– Nunca mais.

Outro inimigo do amor é a semântica.