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sábado, 23 de outubro de 2010
24 de outubro de 2010 | N° 16498
VERISSIMO
Mordiscar não é morder
O amor, sabem todos, tem muitos inimigos. O mau hálito, por exemplo. A maior história de amor de todos os tempos teria sido outra se Romeu tivesse mau hálito, e nem toda a poesia de Shakespeare o ajudaria.
– Meus lábios são dois peregrinos rubicundos que buscam o santuário dos seus...
– Terão eles queixa se eu lhes oferecer, em troca...
– O quê? – Uma bochecha? – Pô, Julieta!
O amor também requer, para ser perfeito, um senso de proporção. Pouco amor não é amor, é amizade ou apenas simpatia. Amor demais pode virar obsessão ou tara. O verdadeiro amor está no equilíbrio. Mas como reconhecer esse equilíbrio ideal? Como mantê-lo, através dos anos, evitando que despenque para um simples convívio resignado ou evolua para a loucura e o crime passional? O descontrole também é um dos inimigos do amor.
Tomemos o caso do Odivar e da Leonor. Ele representante farmacêutico, ela funcionária pública. Uma coisa que a Leonor fazia e que deixava o Odivar todo arrepiado era mordiscar a sua orelha. Começara durante o namoro. Primeiro no cinema, no escuro.
Depois, como namoro assumido, em qualquer lugar. Volta e meia a Leonor mordiscava a orelha de Odivar. Às vezes fazia “rmm, rmm”, grunhia como um cachorrinho, para acompanhar a mordiscada, mas quase sempre era em silêncio. Leonor puxava o lóbulo da orelha do Odivar com os dentes, e Odivar ficava todo arrepiado. Mesmo depois de casado, ficava arrepiado. Até que – o tempo sendo, também, um terrível inimigo do amor – começou a não ficar. E um dia...
Quando entraram na delegacia o quadro era o seguinte. O Odivar com uma orelha sangrando, a Leonor com um hematoma no rosto onde o cotovelo do Odivar a acertara. Os dois falando ao mesmo tempo, até o delegado mandar que parassem e passar a interrogá-los separadamente. Começando com a Leonor. O que acontecera?
– Eu estava mordiscando a orelha dele e...
– Mordiscar não é morder! – interrompeu Odivar.
O delegado mandou-o esperar sua vez. E mandou Leonor continuar.
– Eu estava mordiscando a orelha dele, doutor, como sempre faço, e ele me acertou uma cotovelada. É uma coisa carinhosa que eu faço doutor, e que ele sempre gostou. Mas desta vez me deu uma cotovelada.
Odivar começou seu depoimento dramaticamente. Mostrando a orelha ensanguentada.
– Eu vou levar pontos! Isto aqui é uma mordiscada? É uma coisa carinhosa? Mordiscar não é morder! Se eu não tivesse dado a cotovelada ela tinha arrancado a minha orelha!
O delegado filosofou. Mordiscar não é morder, e é. É uma mordida metafórica. Uma mordida mitigada. Isso. O delegado gostava de “mitigada”. A fronteira entre a mordida mitigada e a mordida real era a fronteira entre o amor e as suas deformações pelo tempo: o ódio, o tédio, o desequilíbrio. A Leonor tinha alguma razão para morder a orelha do Odivar até sangrar?
– Nenhuma! Nenhuma! – gritou o Odivar.
Tinha uma: ele não ficava mais todo arrepiado, como antes. Mas isso Odivar não disse.
– E então, dona Leonor?
– Não mordi. Mordisquei. E, sei lá, me descontrolei.
– Não mordisque mais, dona Leonor.
– Nunca mais.
Outro inimigo do amor é a semântica.
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