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sábado, 30 de outubro de 2010
31 de outubro de 2010 | N° 16505
DAVID COIMBRA
O teste de Cibele
Durante a maior parte da história do mundo, Deus não era Deus; era Deusa. Primeiro porque os seres humanos demoraram milhões de anos para compreender o papel do homem na reprodução. Sabiam que os nenês se desenvolviam na barriga da mulher e, chegado o tempo, blop, dela saíam protestando.
Mas como tinham ido parar lá?
Talvez nossos mais remotos ancestrais até intuíssem que havia alguma contribuição da atividade sexual na concepção, mas não podiam ter certeza de que o filho de uma mulher era de um só homem. Afinal, não existia casamento, nem o conceito de fidelidade conjugal. Ninguém era de ninguém nos velhos e bons tempos. Uma mulher se repoltreava, chafurdava e espadanava com vários homens, às vezes todos os da tribo, que alegria.
Assim, a mulher era o veículo da vida. A mãe. Natural que fosse venerada.
Mais tarde, provavelmente observando os animais enfim domesticados, as pessoas compreenderam que os machos também faziam filhos.
A maneira como os seres humanos viam o homem estava mudando.
Mas a Deusa manteve seu prestígio, porque os homens pouco se importavam com sua descendência. Por um simples motivo: os humanos primitivos eram nômades, não tinham propriedade, a não ser pequenos pertences que podiam carregar ao se transferir de um acampamento para outro. Se os homens não tinham propriedade, não tinham herança. Se não havia herança, qual era o sentido de “preservar a descendência”?
Com a invenção da agricultura é que foi inventada a propriedade. Em suma, com a invenção da agricultura foi inventado o capitalismo. Então, o homem queria deixar sua terra para o seu filho. E sua casa. E suas posses. E seu poder. E, por consequência, seu nome.
Entenda o que escrevi acima: “Por consequência”, não “por causa”. Os nomes e dinastias se formaram a partir da propriedade e do poder, não o contrário.
Bem. Mas como saber que o filho era do homem proprietário e poderoso? Não havia teste de DNA. A mãe era aquela ali, ninguém duvidava, o filho fora cuspido de seu ventre. Mas o pai... Como saber quem era o pai, se ninguém era de ninguém?
Foi essa angústia que gerou a instituição do casamento, da monogamia, da fidelidade conjugal, da família e de todos os nossos problemas. Alguém precisava ser de alguém. A partir de agora, o homem virava proprietário não apenas das suas terras, mas de seus filhos e da sua mulher. O homem cresceu em importância na comunidade. E a Deusa foi trocada pelo Deus. Os hebreus se encarregaram disso. Substituíram a Deusa Mãe pelo Deus Pai. O judaísmo e seus derivados, o cristianismo e o islamismo, são religiões masculinas e capitalistas. Religiões sombrias, eivadas da noção de pecado. Religiões que falam de posse e poder.
A antiga religião, da Deusa Cibele, era uma religião orgiástica, de celebração da existência, uma religião sem culpas. Mas que tinha suas normas. Para se tornar sacerdote da Deusa Cibele, o homem precisava passar por algumas provas. Uma delas se constituía no seguinte: o sujeito devia atravessar uma extensa ponte que ficava tomada por anciãos sentados à esquerda e à direita, encostados nos parapeitos, formando uma espécie de corredor polonês.
O candidato a sacerdote passava por entre os anciãos, que o insultavam. Diziam tudo de ruim que sabiam a respeito dele, inventavam ofensas, xingavam-no à exaustão. Se o pobre difamado conseguisse chegar ao outro lado da ponte sem se abalar, estava aprovado.
A internet é mais ou menos assim. Emails, tuíter, comentários de blog, tudo é quase instantâneo, a pessoa senta-se diante de um teclado e desabafa suas frustrações pela ponta dos dedos. Quem lida com esse instrumento tem de entendê-lo. É como se fosse uma provação. Um exercício de humildade.
A pessoa pública, como os jogadores de futebol, não pode se deixar levar pelas provocações. O torcedor, irracional, apaixonado e irresponsável, esse pode dizer o que bem entender. E diz. Como diz. O profissional, não. O profissional tem de se conter. Ou será reprovado no teste.
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