sexta-feira, 15 de outubro de 2010



15 de outubro de 2010 | N° 16489
DAVID COIMBRA


O futuro de uma ilusão

Lá pelo fim dos anos 20 do século 20, Freud concebeu um livro genial, dentre tantos de seus livros geniais: O Futuro de uma Ilusão, um estudo sobre como a religião é subproduto da Civilização.

Freud discorre acerca do desamparo do ser humano diante das forças da Natureza. Como o homem, tornado adulto, descobre que será sempre uma criança à mercê dos poderes estranhos que o cercam e o ameaçam: um milheiro de doenças, intempéries de verão e inverno, acidentes surpreendentes.

Desesperado em busca de proteção, sabedor de que essa proteção não virá da sociedade que o cerca, o homem se volta para aquela figura plena de força que, durante a sua infância, ele ao mesmo tempo temia e ansiava para que o salvasse de todo o mal: o pai. Indefeso em meio aos perigos do mundo, o homem precisa crer na existência de alguma entidade que o defenda e o oriente, e volta e meia o puna, como fazia seu pai.

Espelhado no que o pai lhe representava quando criança, o homem cria o seu deus: onipotente, amoroso, porém duro.

O texto de Freud demonstra que, quando a Civilização é ineficaz para proteger o homem com suas ferramentas tradicionais, a ciência, a tecnologia, as leis, o homem apela para a religião.

A premissa contrária é verdadeira. Quando os instrumentos da Civilização funcionam, a religião perde prestígio. Em países onde a Civilização atingiu os níveis mais avançados, como a Alemanha e a Inglaterra, grande parte da população flutua com serenidade no ateísmo, no agnosticismo ou na singela indiferença ao transcendental. Ingleses e alemães estão cada vez mais distantes dos deuses. Porque não precisam deles.

Agora mesmo, chamou-me a atenção que foi ela, a Civilização, a festejada no resgate dos mineiros soterrados no deserto de Atacama. Assim que um resgatado brotava da terra e saía da cápsula, ele e os outros que o esperavam na superfície, o que eles faziam? Eles não se ajoelhavam e rezavam, com talvez uma única exceção. Eles não erguiam as mãos para o Céu protetor. Não. A maioria deles gritava:

– Chi-chi-chi! Lê-lê-lê!

Chile. Gritavam o nome do país. Quer dizer: celebravam o Estado que teve interesse em salvá-los e, tendo interesse, investiu nisso, financiou o que há de mais sofisticado em ciência e tecnologia, e criou condições para o resgate bem-sucedido. Ciência e tecnologia. Recursos da Civilização.

Os chilenos, ao entoar o nome de seu país, estavam louvando a Civilização.

Ao mesmo tempo, aqui, no Brasil, transcorre o segundo turno das eleições presidenciais, e a democracia também é um instrumento requintado da Civilização. Mas qual é o maior debate deste segundo turno? O que se cobra dos candidatos a presidente do Brasil e do que eles falam dia após dia?

Do aborto.

De religião.

Essa é a civilização brasileira. Esse é o futuro de uma ilusão.

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