quarta-feira, 13 de outubro de 2010



13 de outubro de 2010 | N° 16487
DIANA CORSO


O canto das betoneiras

Quem vive na cidade pode ter como esporte acompanhar uma obra. Edifícios altos são minhas preferidas. Gosto dos guindastes enormes, o empilhamento sucessivo dos andares, os esqueletos que se preenchem, e pior, alguns de seus barulhos já nem me irritam.

Logo que a construção fica pronta, há o tráfego dos caminhões de mudança, a curiosidade sobre os novos vizinhos. Quando em obra, um imóvel é móvel, em transformação, é uma parte mutante da paisagem. Depois do prédio pronto perco o interesse, quando muito restam janelas iluminadas para supor-lhes alguma vida interior.

Minha alma romântica me diz que deveria restringir meu apreço a casinhas enfileiradas com janelas na calçada ou jardinzinhos, do tipo que ainda se encontra passeando pelo bairro Menino Deus. Também gosto delas, mas aprendi a ver no desabrochar de um prédio alguma poesia.

Quando pequena lembro da emoção com que acompanhei um edifício de 21 andares que ia interrompendo a vista da minha janela, tudo ia bem até que ele se vestiu todo de pastilhas cor de rosa-choque, aquilo não podia ser sério.

De fato, tudo o que uma cidade tem para oferecer me serve: ruas cinzentas da parte velha da cidade com igrejas pentecostais, misturadas a lojas de autopeças e boates, crentes e prostitutas lado a lado; antigos bairros bucólicos; espaços abertos com carros apressados e algum monumento dominando o cenário; tudo guarda algum interesse.

De todas as paisagens, a mais chata é a dos novos núcleos residenciais planejados, com prédios construídos na mesma época, cheios de guaritas, e moradores que nunca saem na rua a pé, suas calçadas vazias dão uma sensação de solidão.

Agora volto a acompanhar um prédio enorme que se impõe no horizonte, desnivelado com tudo em volta, e escrevo enquanto escuto o canto das betoneiras. São gigantes como baleias e quando chega a fase de concretagem entoam seu rangido melódico o dia inteiro, numa espécie de cio urbano dos caminhões com suas barrigas giratórias.

Deveria me irritar, mas paradoxalmente para mim esse já é um dos ruídos que considero normais. Suporto sua familiaridade como alguém jamais alvejaria os passarinhos que gorjeiam interrompendo sua concentração.

Aliás passarinhos também são audíveis e latidos de cachorro, sons que se misturam agradavelmente. Para mim a cidade é um organismo vivo e gosto de senti-lo pulsar. Não envelhecerei num sítio, é tarde demais para deixar de ser tão urbana, o óleo diesel já me atingiu os ossos.

Nenhum comentário: