terça-feira, 12 de outubro de 2010



12 de outubro de 2010 | N° 16486
LUÍS AUGUSTO FISCHER


As vacas

A cidade cheia de vacas: não é um belo mistério? Deparei com umas quantas por esses dias, como todo mundo. E, por mais que estivesse alertado para a Cow Parade, já na segunda me deu o estranhamento: como assim uma vaca por aqui? E por que vaca e não cavalo, ou elefante, ou porco?

Conto no acervo mais íntimo da minha experiência com as vacas da casa do meu avô, em Lajeado. Ele era alfaiate e microprodutor rural, vivendo numa espécie de sítio urbano, a 10 minutos a pé do centro – essas coisas conviviam, um tempo atrás.

A loja dele eu conheci pequeno, depois foi vendida e permaneceu em escassas fotos e no ressentimento familiar; a casa, com seus extensos espaços, parreira, galinheiro, horta, pomar, jardim, potreiro e estrebaria, eu conheci por mais tempo. As vacas eram ordenhadas e o menino que eu era estava ali, do lado, vendo.

Menino da cidade, fascinado e meio atemorizado por aqueles imensos animais, com uma branda inveja dos primos locais, que passavam ao lado delas sem susto, davam talos de capim na boca, batiam na anca, pegavam no chifre, chamavam pelo nome cada uma. Depois as vacas eram tocadas para o potreiro, docilmente; no fim da tarde, retornavam com a mesma candura e passo lento, por um trilhozinho embarrado e pedregoso. As vacas.

Em outros momentos da vida tive contato com vacas. Mais ou menos eu já as conhecia de longe, e o medo desapareceu, restando o gosto por vê-las, paradas ou andando, mastigando e resfolegando ou deslocando sem muita graça seus membros.

Mas eram vacas de verdade, davam leite e carne, além do couro, como se aprendia na escola e na vida. E agora são as vacas estátuas, coloridas, cada qual pintada sempre com a mediação da ironia e da alusão. Uma beleza.

E agora estão elas por tudo que é parte, fazendo perguntas mudas a quem passa. Como suas musas inspiradoras, as vacas da Cow Parade sugerem amenidade e familiaridade, a não ser pela geografia em que estão e pelas pinturas extravagantes, que introduzem o pequeno desconforto na consciência.

Não podia mesmo ser elefante, nem porco, nem mesmo cavalo, porque esses, ao contrário da vaca amiga, se imporiam ao cenário e não se submeteriam às pinturas.

O escritor e professor de Literatura Luís Augusto Fischer escreve quinzenalmente no Segundo Caderno

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