terça-feira, 26 de outubro de 2010



26 de outubro de 2010 | N° 16500
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Nós, que contamos histórias

Atenção, muita atenção: livro imperdível na praça, para qualquer leitor interessado em viajar pelos motivos mais profundos da existência da literatura. Livraço, massagem no cérebro, alargamento de horizontes.

E tudo isso numa forma de ensaio relativamente livre, que combina otimamente com a matéria. Ainda não disse nem nome, nem título: é A Espécie Fabuladora (com o subtítulo que não é um exagero: Um Breve Estudo sobre a Humanidade), de Nancy Huston, editado pela L&PM com tradução de Ilana Heineberg – e minha primeira sugestão de compra na Feira que vem vindo aí.

O livro é uma paciente (embora breve) indagação sobre a força da literatura enquanto uma marca da natureza humana. Somos a única espécie da natureza que sempre se conta histórias; não há grupo humano, de qualquer espaço ou época, que não tenha criado e mantido um conjunto de relatos para explicar o mundo, organizar a vida e transmitir o sentido das coisas aos que vêm chegando.

A autora, romancista consagrada (li dela o belo e pungente Marcas de Nascença, também editado pela L&PM), passeia por vários dos argumentos que o senhor e eu alguma vez até já vimos ou ouvimos em torno do tema; mas ela costura tudo por um interesse bem pessoal, que nos aproxima do tema de modo irresistível: conversando sobre literatura com presidiárias, ouviu de uma delas uma pergunta perturbadora: “Para que inventar histórias quando a realidade já é tão extraordinária?”.

Aí é que tá: a escritora não apenas aceitou a provocação como encontrou um caminho argumentativo singular e eficaz, que mostra a força da narrativa, para o bem da espécie, como se pode ver nos incontáveis relatos existentes, mas para o mal também, como ocorre com aqueles leitores de um único livro ou, pior ainda, com aqueles leitores que tomam certos relatos como de origem divina e por isso como mandatos, não raro como álibi para matar.

Nancy Huston, sem doutrinarismo algum, olha as coisas como uma humanista radical, que concebe a figura divina desde que esta também seja compreendida como criação humana – uma perspectiva freudiana arejada.

O texto termina com uma defesa do romance que é um refrigério para a alma de leitores em pânico, como é meu caso, de vez em quando, ao constatar o avanço da imagem e da instantaneidade sobre e contra a palavra e a reflexão:

o objetivo da ficção literária chamada romance não é ser mais forte que a realidade, mas sim fornecer outro ponto de vista sobre ela – ele não quer ensinar o certo e o errado, como fazem as ficções familiares, religiosas e políticas, mas sim mostrar a verdade dos seres humanos, “uma verdade sempre mista e impura, tecida de paradoxos, questionamentos e abismos”. Assim simples.

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