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terça-feira, 19 de outubro de 2010
19 de outubro de 2010 | N° 16493
MOACYR SCLIAR
De volta a Praga
Estive em Praga pela primeira vez em 1978. Ia em busca da cidade de Franz Kafka, e cidade de Franz Kafka Praga era, sombria como a literatura do grande escritor. Era inverno; a temperatura era de 17 graus negativos, o sol nunca aparecia.
E era o auge do estalinismo; o clima emocional correspondia ao clima meteorológico: pessoas tristes, caladas, ruas escuras, mal-iluminadas. Nas lojas, pouca coisa para comprar; as prateleiras estavam vazias. O que, contudo, correspondia a uma certa lógica, como me explicou um livreiro que parecia sincero em seu comunismo.
Numa economia planificada, argumentava, destinada a atender exclusivamente às necessidades da população, não poderia haver artigos sobrando.
De qualquer modo, aquilo parecia, ao menos para quem estava acostumado à economia de mercado, ao neon da publicidade e às ofertas de produtos diversos, algo estranho, para dizer o mínimo. Esta estranheza chegou ao auge quando, no embarque para a viagem de volta, o segurança do aeroporto deteve-me e revistou minuciosamente minha mala.
Por que o fazia? Se eu estivesse entrando no país, poderia estar trazendo contrabando; mas eu estava saindo, o que importava ao homem minha bagagem?
De repente, dei-me conta; ele estava em busca de material subversivo, aquilo que à época era conhecido pelo termo russo de “samizdat”, livros e folhetos contra o regime, que eu poderia estar contrabandeando para o mundo capitalista. Felizmente eu não tinha nenhum “samizdat”, o que teria representado um sério problema.
Na semana passada, voltei a Praga, a convite da Universidade Carolina, a mais antiga da Europa Oriental. Tratava-se de um evento promovido por nossa embaixadora na República Checa, a dinâmica Leda Lucia Camargo; aliás, gaúcha de Porto Alegre. Dei uma palestra sobre Kafka, a América Latina e o Brasil, para um público formado de professores e alunos de literatura brasileira. Visitamos a cidade, minha mulher e eu.
De novo foi uma surpresa, desta vez agradável. Para começar, os dias eram amenos, ensolarados. E Praga é uma cidade vibrante, que preserva seu passado histórico e artístico, mas está voltada para o futuro.
A quantidade de atrações culturais é incrível. No passado, Kafka era um escritor semimarginalizado pelo regime; agora, é uma presença constante – existe inclusive um Museu Kafka, que reconstitui a trajetória desse grande escritor, que morreu cedo, sem ter sua obra reconhecida.
Um homem esmagado pelo conflito com o pai, um homem que jamais conseguiu manter uma relação estável com mulheres e que, ao perecer vitimado pela tuberculose, pediu ao amigo Max Brod que destruísse seus originais (coisa que Brod felizmente não fez).
Se Kafka fosse nosso contemporâneo, talvez tivesse tido um destino diferente; no divã do psicanalista (em sua época Freud estava ainda no começo da carreira), poderia ter compreendido melhor os seus problemas. A pergunta, obviamente ociosa, é se não teria produzido então outro tipo de literatura, menos deprimente mas também menos genial.
Uma literatura, digamos, mais 2010 e menos 1978. Não temos como responder a esta questão. A história das pessoas, como a história da humanidade, às vezes toma rumos inesperados. E isso, que pode ser não raro angustiante, representa o desafio do qual, no caso de Kafka, resultou uma grande literatura. Sombria, como é o clima psicológico sob o autoritarismo, mas mesmo assim grande.
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