terça-feira, 5 de outubro de 2010



05 de outubro de 2010 | N° 16479
CLÁUDIO MORENO


Escrito no rosto

Depois que inventaram o pergaminho, a vida das ovelhas e dos cabritos nunca mais foi a mesma. Os artífices de Pérgamo, cidade grega da Ásia Menor, descobriram que a pele desses animais constituía um material muito superior ao papiro; raspavam pacientemente o couro com uma lâmina especial, alisavam com pedra-pomes e depois branqueavam com gesso ou cal, obtendo uma magnífica superfície para escrever ou desenhar.

Como era um material raro e escasso, era comum reutilizá-lo: para apagar o texto primitivo, bastava lavá-lo com uma solução alcalina, para remover a tinta, e poli-lo mais uma vez com pedra-pomes; por isso, esses pergaminhos reciclados foram chamados de “palimpsestos” (de palin, “de novo” e psestos, “raspado”).

Muitos textos importantes foram trocados por outros que nem mereciam sobreviver. Felizmente, para a memória da humanidade, a química rudimentar dos antigos não conseguia remover totalmente os pigmentos da tinta, permitindo que, hoje, aparelhos modernos de radiografia e de infravermelho “leiam” o texto primitivo que ficou escondido debaixo do novo texto.

Por exemplo, sob as inocentes páginas de um livro de rezas foram descobertos vários escritos inéditos de Arquimedes sobre Matemática; grande parte da obra De Re Publica, de autoria de Cícero, que era considerada perdida, foi achada sob uma cópia malfeita de um trecho de Santo Agostinho.

O palimpsesto é uma espécie de sítio arqueológico na forma de livro, em que várias estratos do passado se superpõem, à espera de que alguém os traga à luz do dia; por isso, De Quincey, e depois Freud, escolheram-no como uma metáfora adequada para a nossa memória e para o nosso inconsciente.

Este esquisito século em que vivemos, no entanto, parece que não concorda, e luta para petrificar nosso rosto, imobilizá-lo no tempo, eternizar sua juventude, logo a única parte visível de nosso palimpsesto, logo este pedaço de pele que trazemos sempre à mostra para que os outros possam ler! Este é o pergaminho da nossa experiência, em que aparece este texto que escrevemos e reescrevemos infinitamente.

É ali que a alma se mostra e se disfarça, é ali que, mesmo não querendo, terminamos publicando nossas emoções mais secretas.

Não importa que a química do tempo, na sua lenta sabedoria, vá suavizando os contornos e esmaecendo as cores, porque, letra após letra, traço após traço, todos os sinais estarão ali, invencíveis, superpondo-se uns aos outros para compor este rosto que sempre nos olha no espelho.

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