sábado, 16 de outubro de 2010



16 de outubro de 2010 | N° 16490
NILSON SOUZA


Personagens

Está cada vez mais difícil dissociar a realidade da fantasia. Se a televisão já confundia os nossos sentidos, colocando imagens de pessoas distantes dentro da nossa sala e fazendo-as enganosamente íntimas, agora o mundo virtual se ampliou de tal forma, que todos nos transformamos em personagens permanentes do sempre enigmático espetáculo da vida.

Nossas identidades, nossos movimentos gravados pelo olhar eletrônico das câmeras de rua, nossos endereços, nossos amigos e nossos sonhos, tudo está ao alcance dos dedos alheios. A comunicação instantânea devassa definitivamente a privacidade dos habitantes de qualquer canto deste planeta multimidiático.

Werner Schünemann, recentemente assassinado na novela Passione, me contou certa vez que um dos percalços da vida de ator é o sujeito ser confundido com os personagens que interpreta. Muito antes de ser o crápula Saulo Gouveia, ele fez um outro tipo tão malvado, que, nos intervalos das gravações, ninguém queria sentar ao seu lado na mesa do almoço.

O ator Jackson Antunes chegou a apanhar na rua por conta do seu personagem mau-caráter na novela A Favorita.

Tudo bem, as celebridades sempre pagam um preço pela visibilidade. Artistas, especialmente os que trabalham no cinema e na televisão, são compreensivelmente amados e odiados por conta de seus personagens. O que mudou com a explosão da tecnologia digital e com as redes sociais é que mesmo as pessoas comuns, que nunca moveram uma palha para se tornarem conhecidas e populares, passaram a figurar como personagens no youtube da exposição planetária.

Outro dia, viajando pela tela do computador, encontrei o meu Tio Neno declamando uma poesia gauchesca numa escola pública. É um parente querido, que tenho visto pouco, devido às atribulações profissionais.

Homem simples, de poucas letras mas de imensa memória (capaz de decorar e soletrar palavra por palavra até mesmo uma crônica inteira do Sant’Ana), ele certamente nunca imaginou que estrelaria o seu próprio vídeo num cantinho da web. Mas está lá, ao vivo e a cores, com som e imagem, personagem involuntário desta fantástica realidade que se confunde com a ficção.

Haverá um momento em que todos estaremos nesta segunda vida virtual, se é que já não estamos. Nossos personagens nem sempre autorizados, formados por fragmentos de nossa vida real, passarão a nos representar com sua própria personalidade, como esses que assumem a identidade dos atores das novelas. Parece inexorável. Só resta torcer para que não se tornem vilões, comprometendo o nosso almoço.

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