quarta-feira, 20 de outubro de 2010



20 de outubro de 2010 | N° 16494
JOSÉ PEDRO GOULART


O revólver e o relógio

Escapei da bala, mas não da vergonha.

São Paulo, duas da tarde, semana passada. Quando aqueles dois sujeitos, trepados numa moto, rasparam no táxi e pararam, pensei que iam pedir desculpas. Mas não era por gentileza que eles estavam ali. Por debaixo da jaqueta preta do carona, surgiu um grosso cano de prata. Antes de ser um acinte, um revólver é uma síntese. O coração é sangue. O cérebro é carne. A bala é aço.

Surpreendentemente não houve surpresa no assalto. Ambos, eu e o motorista do táxi, carregávamos em algum lugar da memória aquela espécie de lembrança de que algo assim está sempre por acontecer. O rapaz gritava e cuspia a ordem: “O relógio, me dá a porra do teu relógio!”.

Ou a vida. Mas isso ele não disse, quem afirmava isso era aquele revólver suspeitamente calado.

Foi então que eu abri a porta e pulei. Como pulam os sapos. Ejetado pelo medo, cerrei os dentes para trancar a passagem do fluxo ácido que o meu estômago mandava em resposta à carga de adrenalina despejada. Nem deu tempo de me arrepender da atitude – seria justo deixar o motorista só? Logo os motoqueiros me seguiram. Não havia dúvida, eu era a presa. Um gnu, um cervo, talvez o próprio sapo.

De maneira que me vi na rua, perante vários da minha espécie, mas por azar ou injustiça só eu era perseguido. Em momentos assim a manada se espalha. Cada um por si e aquele revólver contra todos. Corri para frente e esse erro quase me custou este texto. Nunca o berro esteve tão apontado para mim. Nunca o grito daquele rapaz foi tão ríspido: “Não foge, filho da puta”.

Isso é mentira. Isso eu não sou. Tenho meus defeitos e só eu sei o quanto me custam. Mas filho da puta, até aqui na minha vida pelo menos, garanto que não. Já fugir, não há nada que me impeça.

Covarde seria se eu renunciasse à vida por uma bravata sem sentido. Então corri na contramão do fluxo, na contramão do destino, com o desejo de ainda ser a me empurrar as pernas e uma incerteza a me travar: “O Bem, o Mal. É tudo igual”.

Escapei da bala. Nunca saberei o nome do diabo que por instantes me teve na mira e o porquê de ele não ter atirado. Se bobeou, se apiedou-se ou se o trabuco trancou. Do episódio não tiro lição. Há a vida, a morte, a sorte e é só. Nada mais é que há.

Deponho por duas razões; uma, para afirmar que nenhum relógio, por mais caro que seja, vale o tempo que marca. E a outra, pela vergonha de que a minha vida possa valer o mesmo que vale um relógio.

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