quarta-feira, 27 de outubro de 2010



27 de outubro de 2010 | N° 16501
DAVID COIMBRA


O protagonista

O primeiro personagem da História foi Sargão. Por “personagem” refiro-me a um indivíduo que, com sua personalidade e suas decisões pessoais, influenciou no rumo dos acontecimentos de uma comunidade. Ou de várias comunidades.

Se bem que muitos historiadores acreditam que a História não tem personagens. Para eles, as sociedades se movem em bloco, independentes dos indivíduos que as compõem. As coisas acontecem porque têm de acontecer, são inevitáveis consequências de evoluções econômicas, geopolíticas e filosóficas.

Ingenuidade ideológica dos historiadores.

Prefiro a sabedoria de Pascal, que dizia que, se o nariz de Cleópatra fosse menor, a História do mundo seria outra. A frase, de tão boa, mudou a imagem de Cleópatra em retrospectiva. Mil e seiscentos anos após sua morte, as pessoas passaram a achar que ela era nariguda, coitada.

Depois, agora, no século 21, um arqueólogo encontrou uma antiga moeda com a efígie de Cleópatra. A efígie, apesar de gasta e amassada, revelava uma imagem meio parecida com a cara da Madame Min, o que foi o suficiente para que os historiadores concluíssem que Cleópatra era um jaburu.

Perfeito para os historiadores. Uma Cleópatra feia reduz a força do seu papel na História. Ela não havia seduzido Júlio César e Marco Antônio com seus ardis de alcova, mas devido aos seus trunfos no jogo político internacional.

Outra ingenuidade ideológica dos historiadores.

Júlio César e Marco Antônio cometeram, por Cleópatra, desatinos que nenhum homem comete por um aliado que faça a barba e tenha gogó. Júlio César impôs a amante aos romanos escandalizados, levou-a para a Cidade Eterna, passeou com ela em triunfo pelas sete colinas e acenou que o filho dos dois, Cesário, seria seu herdeiro.

Já Marco Antônio jogou-se sobre a própria espada ao receber a falsa informação de que ela morrera. Morreu esviscerado e louco de paixão. Não. Cleópatra devia ser uma dessas mulheres que sabem agradar um homem. E seu nariz devia ser pequeninho, embora haja por aí muitas narigudas sensuais.

A beleza de Cleópatra, portanto, fez diferença para a História da Humanidade. Assim como a epilepsia do seu amante Júlio César; as dimensões diminutas do pênis de Napoleão; a feiura e a brabeza da mulher de Sócrates, Xantipa; a virgindade jamais rompida de Nietzsche; o homossexualismo de Lawrence da Arábia; o fato de Hitler ter sido reprovado na escola de arquitetura de Viena; e os furúnculos de Marx, pelos quais os capitalistas pagaram caro, como ele próprio ameaçou, escrevendo em seu quarto na cinzenta Manchester da Revolução Industrial.

Tudo isso fez diferença, bem como a energia sem fim de Sargão. Sua mãe era uma prostituta do templo; seu pai, desconhecido. Quando Sargão nasceu, cerca de 4.400 anos antes de Cristo, sua mãe teve de livrar-se dele para sobreviver como servidora do templo. Como? Ele próprio contou:

“Minha humilde mãe concebeu-me; em segredo me pôs no mundo. Colocou-me numa cesta de vime; com breu fechou minha porta”.

Sargãozinho foi encontrado às margens do rio por um operário, que o criou como filho. Admitido no palácio real na função de camareiro, tornou-se favorito do soberano, até derrubá-lo, assumir seu lugar e tornar-se “Rei do Universo”.

Como você deve ter percebido, a Bíblia inspirou-se na história de Sargão para contar a história de Moisés. Não foi o único plágio bíblico: a lenda do Dilúvio também faz parte da crônica dos sumérios, povo conquistado por Sargão. O Noé sumério chamava-se Ziusudra.

Ele também construiu uma arca, calafetou-a com breu, salvou-se com sua família e repovoou a Terra. Alguns cientistas fazem fé nessa versão. No fim dos anos 20, o professor Leonard Woolley assegurou ter descoberto provas de que o dilúvio foi uma enchente do Eufrates ocorrida em 3.500 antes de Cristo.

Enfim. Sargão. Foi ele o primeiro conquistador, o homem que, com suas qualidades pessoais, dominou todas as cidades-estado da Mesopotâmia e transformou-se, a rigor, no primeiro imperador do mundo.

A partir de Sargão, outros passaram a perseguir a glória de comandar os destinos de seus contemporâneos. De TODOS os seus contemporâneos. E assim a História da Humanidade deu uma virada. As grandes guerras de conquista estavam começando.

Isso ocorreria de qualquer forma, com ou sem Sargão? Um outro Sargão faria o mesmo em seu lugar? É possível. Mas também é possível que, se o fizesse, fizesse de outra maneira. E tudo seria desencadeado para outro caminho que não o tomado pelo mundo ocidental.

Os personagens existem. Eles fazem o que a maioria mediana não consegue fazer. Há um respirando entre nós: o argentino D’Alessandro. Sozinho, ele mudou o Gre-Nal de domingo passado. Sozinho, ele transformou em realidade o que parecia improvável. Ao contrário de um talentoso porém displicente Douglas, D’Alessandro compreendeu o significado de um Gre-Nal. E fez o que tinha de fazer um autêntico protagonista da História.

Fez a diferença.

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