sábado, 30 de outubro de 2010



30 de outubro de 2010 | N° 16504
PAULO SANT’ANA


A carrocinha dos cachorros

Quando éramos pequenos e saíamos da Chácara das Bananeiras em direção à Olaria, onde hoje é o Hospital da PUC, enveredávamos por um paraíso de águas e de matas encravado em plena cidade de Porto Alegre.

E ficávamos inteiramente nus em cima dos barrancos, prontos para darmos as pontas, que era como se chamavam os mergulhos verticais sobre o arroio.

Na nossa volta, as árvores nos ofereciam pitangas, araçás, butiás, romãs e outras frutas.

No chão, corríamos o perigo de sermos picados pelas cobras, elas se desenroscavam pelos galhos e vinham para o solo em busca de insetos ou batráquios. Serpentes de todas as espécies. As vermelhas, nós chamávamos de corais. Tinham a mesma variedade de cores que as borboletas que alçavam voos tão pronto a gurizada tomava conta do território.

Porto Alegre era uma cidade contraditória, já se alçava a uma grande capital, mas, por exemplo, ali onde hoje é o Shopping Iguatemi, tinha uma fazenda com bovinos, caprinos, ovinos e suínos. Isto mesmo, poucas décadas atrás, o Iguatemi era uma fazenda.

Voltemos à Olaria. Os meus leitores não vão acreditar, o arroio corria entre dois barrancos. E a gente pegava o cipó de um lado e viajava até o outro, quando não nos dedicávamos a soltar o cipó no meio da travessia e mergulhar na água hospitaleira.

Era estupendo o espetáculo daqueles cerca de 20 garotos se refestelando numa verdadeira colônia de nudismo agreste. Dentro da Capital! Por isso é que amo esta cidade, fui testemunha de sua violenta e sublime transição entre campestre e urbana.

Depois, foram chegando os tratores, as retroescavadeiras, os operários. Nem percebíamos, guris ingênuos e travessos, que estavam roubando o nosso éden. E nos espantando para a áspera selva de cimento em que vivemos hoje.

Porto Alegre hoje tem 5 mil táxis. Naquele tempo, não havia 50. Nós quase não conhecíamos automóveis. Eles passavam distantes e raros lá ao longe, na Rua Aparício Borges. Nós os víamos como naves interplanetárias, algo distante da nossa realidade.

Quando se atreviam os veículos a se aproximarem de nossas casas, duas ou três vezes por ano, levados por estradas secundárias, eram ambulâncias ou camionetas da polícia. Só urgências podiam aproximar veículos de nosso povoado.

Isto tudo em Porto Alegre, gente, Capital!

Depois, as ruelas do nosso lugarejo passaram a ser invadidas amiúde por outros veículos estranhos: o caminhão que distribuía gelo, o caminhão que recolhia os cubos das latrinas.

E a carrocinha dos cachorros. Era uma carroça da prefeitura que caçava pelas ruas os cães vadios e sem dono.

Quando a carrocinha dos cachorros chegava, era um alarido entre a gurizada. Ela era cercada de vaias veementes, todos com receio de que ela recolhesse os seus cães por inadvertência.

Dizia-se que os cachorros eram trazidos para a Rua Cabo Rocha, onde havia uma fábrica de sabão. Os nossos queridos cãezinhos iriam virar sabão.

Belos e inesquecíveis tempos da nossa rica infância partenoense. Não voltam mais aqueles tempos, tanto desejávamos que voltassem e nos obrigassem a sermos puros novamente.

Infância querida. Nossas vidas ainda guardam as tuas marcas.

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