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quinta-feira, 14 de outubro de 2010
14 de outubro de 2010 | N° 16488
PAULO SANT’ANA
Volta da surdez
Prestem bastante atenção nesta crônica, que ela vai render muito.
Ontem à tarde, dirigi-me ao Mãe de Deus Center. Eu estava muito triste e fui a uma consulta marcada com a fonoaudióloga Isabela Menegotto.
A minha profunda tristeza era porque eu andava quase totalmente surdo. As pessoas que trabalham comigo eram obrigadas a falar alto, às vezes gritar, para que eu ouvisse.
E dizem que não há milagres, mesmo depois que esses 33 mineiros chilenos foram resgatados do centro da Terra.
Pois comigo também aconteceu um milagre, que passo a descrever.
Saí do consultório da doutora Isabela escutando tudo. Ela adaptou-me um aparelho auditivo que me fez voltar a ouvir.
Estou escrevendo e ouvindo os sons todos que se espalham nesta sala, desde a televisão até o vozerio indiscriminado dos meus colegas, sendo que nada disso acontecia anteontem.
A moral desta minha história é que só existe uma coisa melhor do que ouvir: é voltar a ouvir.
Ou seja, o grande prazer de ouvir consiste exatamente em ter ficado surdo e conseguido mais tarde ouvir de novo.
Você, leitor ou leitora que me está lendo, com certeza não valoriza sua audição. Porque nunca a perdeu.
Eu, que perdi a audição, voltei a ouvir e me sinto agradecido a Deus por isso. Ou melhor, agradeço a Deus, aos inventores e aperfeiçoadores do meu aparelho auditivo e, é claro, à minha fonoaudióloga.
A lição que aprendi ontem é a de que quem já conheceu o inferno valoriza mais o céu do que os que nunca sofreram com as labaredas da residência do diabo.
Quem é jovem só vai dar valor à sua juventude depois que ingressar na velhice. Só será esplendorosamente reconhecido à fortuna que hoje possui quem já tiver sido asperamente pobre.
Só há uma forma de possuir com alegria e realização, é um dia não ter tido.
De nada me adianta ser feliz, porque não o perceberei, se eu não tiver sido infeliz antes.
O melhor das botas é descalçá-las, disse o nosso Machado de Assis, com máxima sabedoria: ou seja, só valoriza os pés descalços ou nos chinelos quem passou o dia inteiro de botas a atazanarem seus pés.
O que eu queria dizer, os meus leitores já estão cansados de saber: só é saborosa uma vitória se for obtida por quem um dia já sofreu uma derrota.
Uma pessoa que sempre foi saudável tem menos chance de se sentir feliz e realizada do que outra pessoa que conseguiu curar-se de uma doença gravíssima.
Para alegrar-se, é necessário que se esteja, antes disso, não alegre.
Mas, voltando à minha surdez de domingo, segunda-feira e terça-feira. Torno a dizer que só escutava se as pessoas gritassem comigo.
De repente, ontem, depois de ir à fonoaudióloga, vim correndo trabalhar.
A primeira pessoa que me viu aqui na sala foi o Clóvis Malta, que falou gritando comigo. E eu lhe disse energicamente: “Vá gritar com os seus filhos!”.
Pobre do Malta, não sabia que eu não era mais surdo. Nem eu sabia. Se eu soubesse, não teria xingado o Malta.
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