07
de julho de 2013 | N° 17484
ARTIGOS
- Fernando Schuler*
Nosso destino
comum
Stefan
Zweig suicidou-se em fevereiro de 1942, três anos antes do fim da guerra.
Enxergava o mundo tomado pela guerra e pela barbárie e não suportou a visão de
sua amada Europa destruída. Tivesse Zweig resistido à melancolia e
sobrevivesse, lendo e escrevendo em seu refúgio de Petrópolis, teria visto o
alvorecer do mais longo período de paz já visto pela humanidade. No auge da
grande guerra, a taxa de mortos em combate chegou a 300 para cada 100 mil
pessoas/ano. Na primeira década do nosso século, atingimos uma taxa de 0,5
morte por cada grupo de 100 mil pessoas.
Nossa
época assiste a um fenômeno indiscutível: a violência declina, de maneira
acelerada e contínua. Este é o tema do livro de Steven Pinker, neurocientista
da Universidade Harvard, Os Anjos Bons da Nossa Natureza, recentemente lançado
no Brasil. Entre as explicações apresentadas por Pinker está o avanço da
democracia, mundo afora. No último meio século, a quantidade de democracias
saltou de pouco mais de 30 para perto de cem países. O avanço das democracias
traz consigo um rastro positivo de afirmação de direitos, inclusive no plano
internacional. As missões de paz quintuplicaram em número desde os anos 80.
Se
Pinker tem razão (e parece ser o caso), de onde provém a impressão generalizada
de que vivemos uma época de caos e violência crescentes? Há muitas razões. Para
começar, pouca gente gosta de números e estatísticas. Em regra, reagimos a
impressões.
Quem
sabe, logo ali adiante, algum aparelhinho ao estilo Google Glass poderá nos
oferecer uma visão em perspectiva de qualquer acontecimento. Ao cravarmos os
olhos na notícia do golpe no Egito, aparecerá uma tela virtual na nossa frente
atualizando a taxa média de golpes de Estado a cada decênio. Receio que pouca
gente deixaria o aparelhinho ligado.
Gosto
da metáfora de Baudrillard: vivemos um tempo no qual o virtual se expande a
velocidade superior ao real. Algo próximo ao chamado efeito breaking news:
qualquer informação “explosiva”, um estupro na Índia, a condenação à morte de
uma mulher por adultério, no Irã, reproduzida ad nauseam, em especial pela
internet, produz instantaneamente um impacto global.
O
que não deixa de ser positivo. Ajuda a expandir o círculo de nossa consideração
moral em relação aos outros, como bem expressou o filósofo Peter Singer. Somos
crescentemente capazes de sentir empatia e exigir respeito para com pessoas e
comunidades muito distantes, isto também ocorrendo, de um jeito diferente, em
relação aos animais.
O
ponto é que, perdidos no oceano caótico de informação, por vezes deixamos
escapar uma lição muito importante sobre nós mesmos. A lição que responde a uma
velha pergunta formulada pelos filósofos: qual é a face de nosso destino comum,
como comunidade humana? Quem sabe, longe do alarido dos noticiários, uma
resposta vai sendo delineada.
Um
bilhão de pessoas saíram da miséria, nas últimas duas décadas, e, se não
fizermos muita besteira, a pobreza estará extinta do planeta até a metade do
século. Nosso país tropical, por volta de 2030, terá uma renda per capita
próxima a US$ 20 mil, semelhante à renda atual de Portugal. A expectativa de
vida dobrou ao longo do século passado e em algum momento do atual cruzará a
fronteira dos cem anos. E até mesmo vamos ficando mais espertos. Conforme
indica o “efeito Flynn”, formulado pelo pesquisador James Flynn, a média dos
testes de QI tem aumentado de forma continua três pontos a cada 10 anos.
Aos
poucos vai se desenhando a face de nosso destino comum: viver mais, com mais
recursos, mais informação, e em um mundo surpreendentemente menos arriscado. O
que vamos fazer em um mundo como este é outra questão. Prossegue sem resposta
uma segunda e também antiga pergunta dos filósofos: o que vale a pena fazer com
uma vida eventualmente mais longa e plena de escolhas? Peter Singer sugere uma
vida de intenso compromisso ético. Pra começar, sugere, todo mundo deve doar 5%
de sua renda para retirar crianças da miséria.
Um
filósofo mais ameno, como Gilles Lipovetsky, aposta que viveremos o declínio
das éticas do sacrifício. Sacrifício pela religião, pela honra, pela ideologia.
Desconfio que o século 21 será um dia visto como a era da desintoxicação
ideológica do planeta. Época em que mais e mais pessoas terão encontrado um
sentido existencial muito particular na cooperação e na consideração com os
outros. São hipóteses. Esta segunda pergunta não é nada fácil. A graça é que
teremos, entre outras coisas, mais tempo para pensar a respeito.
*DOUTOR
EM FILOSOFIA PELA UFRGS
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