domingo, 30 de setembro de 2012


FERREIRA GULLAR

Tapar o sol

O julgamento do STF realiza-se à vista de milhões de telespectadores. Não é uma conspiração

GOSTARIA DE deixar claro que não tenho nada de pessoal contra o ex-presidente Lula, nem nenhum compromisso partidário, eleitoral ou ideológico com ninguém. Digo isso porque, nesta coluna, tenho emitido, com alguma frequência, opiniões críticas sobre a atuação do referido político, o que poderia levar o leitor àquela suposição.

Não resta dúvida de que tenho sérias restrições ao seu comportamento e especificamente a certas declarações que emite, sem qualquer compromisso com a verdade dos fatos. E, se o faço, é porque o tenho como um líder político importante, capaz de influir no destino do país. Noutras palavras, o que ele diz e faz, pela influência de que desfruta, importa a todos nós.

E a propósito disso é que me surpreende a facilidade com que faz afirmações que só atendem a sua conveniência, mas sem qualquer compromisso com a verdade. É certo que o faz sabendo que não enganará as pessoas bem informadas, mas sim aquelas que creem cegamente no que ele diga, seja o que for.

Exemplo disso foi a entrevista que deu a um repórter do "New York Times", quando voltou a afirmar que o mensalão é apenas uma invenção de seus adversários políticos. E vejam bem, ele fez tal afirmação quando o Supremo Tribunal Federal já julgava os acusados nesse processo e já havia condenado vários deles. Afirmar o que afirmou em tais circunstâncias mostra o seu total descompromisso com a verdade e total desrespeito com às instituições do Estado brasileiro.

Pode alguém admitir que a mais alta corte de Justiça do país aceitaria, como procedentes, acusações que fossem meras invenções de políticos e jornalistas irresponsáveis?

E mais: os ministros do STF passaram sete anos analisando os autos desse processo, tempo mais que suficiente para avaliá-lo. Afirmar, como faz Lula, que tudo aquilo é mera invenção equivale a dizer, implicitamente, que os ministros do STF são coniventes com uma grande farsa.

Mas o descompromisso de Lula com os fatos parece não ter limites. Para levar o entrevistador do "NYT" a crer na sua versão, disse que não precisava comprar votos, pois, ao assumir a Presidência, contava com a maioria dos deputados federais.

Não contava. Os verdadeiros dados são os seguintes: o PT elegera 91 deputados; o PSB, 24,; o PL, 26, o PC do B, 12, num total de 153 deputados. Mesmo com os eleitos por partidos menores, cuja adesão negociava, não alcançava a metade mais um dos membros da Câmara Federal.

Cabe observar que ele não disse ao jornalista norte-americano que não comprou os deputados porque seria indigno fazê-lo. Disse que não os comprou porque tinha maioria, ou seja, não necessitava comprá-los. Pode-se deduzir, então, que, como na verdade necessitava, os comprou. Não há que se surpreender, Lula é isso mesmo. Sempre o foi, desde sua militância no sindicato. Para ele, não há valores: vale o que o levar ao poder ou o mantiver nele.

Sucede que, apesar do que diga, ninguém mais duvida de que houve o mensalão. Pior ainda, corre por aí que o Marcos Valério está disposto a pôr a boca no mundo e contar que o verdadeiro chefe da patranha era o Lula mesmo, como, aliás, sempre esteve evidente. E já o procurador-geral da República declarou que, se os dados se confirmarem, o processará. É nessas horas que o Lula falastrão se cala e desaparece. Às vezes, chama Dilma para defendê-lo.

Desta vez, chamou o Rui Falcão, presidente do PT, para articular o apoio dos líderes da base política do governo. Disso resultou um documento desastroso, que chega ao ponto de acusar o Supremo de perpetrar um golpe de Estado contra a democracia, equivalente aos golpes que derrubaram Vargas e João Goulart. Pode? Vargas e Goulart, como se sabe, foram depostos pela extrema direita com o apoio de militares golpistas.

O julgamento do STF realiza-se às claras, à vista de milhões de telespectadores. Não é uma conspiração. Ele desempenha as funções que a Constituição lhe atribui. E que golpe é esse contra um político que não está no poder?

O tal manifesto só causou constrangimento. O governador Eduardo Campos, de Pernambuco, deu a entender que foi forçado a assiná-lo, após rejeitar três versões dele. Enfim, mais um vexame. Só que Lula, nessas horas, não aparece. Manda alguém fazer por ele, seja um manifesto, seja um mensalão.

Queria me orgulhar e elogiar o jornal de minha cidade e de meu estado. Mas definitivamente não está dando. Se vc tentar ler as crônicas de cronistas nossos da Zero Hora estão todas sem link. Clica-se e vai para lugar nenhum em nenhum navegador.

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MAURICIO STYCER

Tristes tardes

Programas vespertinos de televisão apostam na ideia de que "é isso que o público quer". Duvido

SÃO 17H de quarta-feira quando uma moça, apresentada como advogada, surge na tela. Diante dela, sentada, uma senhora carrancuda pergunta qual é o problema que a traz ali. "Já tentei o exame da OAB duas vezes e não passei", ela explica, antes de perguntar se vai ser bem-sucedida na terceira tentativa.

Sem mover um músculo do rosto, Mãe Dináh dá a receita. Primeiro, pense positivamente. Depois, coloque um ovo numa panela com leite e acrescente a mensagem com o pedido: "Eu quero passar". Deixe ferver. "Você vai ver como consegue tranquilamente", assegura a vidente.

A cena se passa ao vivo, no palco da TV Gazeta, em São Paulo, durante o programa "Mulheres", uma espécie de decano das atrações vespertinas na televisão.

No ar desde 1980, primeiro com o nome "Mulheres em Desfile", o programa ajudou a fixar a ideia de que o público deste horário, supostamente feminino, está interessado em programas descontraídos, em ritmo de conversa na sala de estar, sobre todo tipo de bobagem.

A produção precária da Gazeta e o jeitão descontraído de Catia Fonseca, apresentadora do "Mulheres", ajudam a passar a impressão de que a conversa, seja sobre esoterismo, fofoca, moda ou gastronomia, está de fato ocorrendo na casa da sogra.

Por justiça e mérito, Catia é uma campeã em aparições no "Top 5" do "CQC", dedicado a gafes e situações ridículas exibidas na televisão. Esta semana, por exemplo, comentando uma foto indiscreta da atriz Kristen Stewart que vazou na internet, a apresentadora sublinhou: "Ela tá com a mão assim, tapando o fiofó".

"Mulheres" sofre hoje a concorrência direta de duas atrações com formato semelhante, "Muito +", na Band, e "Programa da Tarde", na Record. Ambos exploram a mesma premissa -de que é preciso entupir o público com bobagens no meio da tarde-, mas dispõem de mais recursos, embalagem "moderna" e apresentadores mais famosos.

Comandante do "Muito +", Adriane Galisteu não aparece tanto quanto Catia Fonseca no "Top 5" do "CQC", apesar de também merecer, mas é campeã em matéria de capas da "Caras". Esta semana, ela mostrou no ar a enésima revista que a exibe sorridente anunciando que está "pronta para ter o segundo filho".

Seus companheiros de programa não fizeram nenhuma piada a respeito, mas logo deram início ao que Galisteu chamou de "fofocaiada" -uma sessão de comentários sobre notícias publicadas em revistas e sites do mesmo ramo que a "Caras". Dois atores de "Avenida Brasil" foram criticados com severidade por se recusarem a comentar fofocas sobre o suposto namoro deles.

Na Record, Ana Hickmann passou quase uma hora na casa de praia de Gugu Liberato, conversando sobre assuntos tão palpitantes quanto o implante de cabelos do apresentador e a cor da cueca que ele usa para dormir.

Numa entrevista com Sabrina Sato, um repórter perguntou: "A primeira vez que você fez amor foi com o Dhomini ou com o Felipe?". Ao que a moça respondeu, espantada: "Mas o programa é da tarde".

Contando isso assim, selecionando os "melhores" momentos, chega a parecer engraçado. Mas é triste.

Com base em pesquisas, números de audiência, intuição ou simples preconceitos, esses programas vespertinos apostam na ideia de que "é isso que o público quer". Duvido. Na minha opinião, expressam simplesmente a incapacidade de oferecer algo melhor.

mauriciostycer@uol.com.br

DANUZA LEÃO

O clandestino

Fico imaginando o tamanho da solidão de um homem no meio do oceano, sem ter noção de onde está

HÁ ALGUM tempo, uns dois meses, talvez, li uma notícia que me paralisou. Um homem de Camarões, país da África, conseguiu entrar num navio como clandestino, sem nem saber para qual destino.

Fiquei pensando nesse homem, que devia ter uma vida tão sem esperança, tão sem perspectiva, que decidiu se arriscar a qualquer coisa, em qualquer lugar do mundo, à procura de um futuro. Ele não escolheu para onde queria ir, desde que pudesse deixar para trás tudo o que tinha sido sua vida até aquele momento; devia ter suas razões. Mas esse é apenas o começo da história.

Depois de sete dias de viagem, e já a dez quilômetros da costa do Brasil, a tripulação desse navio, de bandeira de Malta, descobriu o camaronês, de 28 anos. Como punição, ele foi jogado ao mar, com uma pequena balsa, e ficou à deriva durante 12 horas, quando foi resgatado por um navio chileno que passava.

Segundo o noticiário da época, ele seria deportado, a tripulação do navio que o jogou ao mar iria prestar depoimento etc. etc., mas o tempo passou e até hoje, quando abro o jornal, procuro uma notícia que me esclareça a continuação dessa história dramática que não consigo esquecer, mas nunca soube como terminou.

Sabe-se que o ser humano é capaz das piores coisas.

Mas nesse caso não foi um único ser humano; foi um grupo de seres humanos, todos unidos, todos de acordo em cometer esse ato de barbárie. Jogar em alto-mar um homem porque ele embarcou no navio sem documentos, sem ter comprado uma passagem, enfim, ilegalmente -o que, imagino, deve ser contra muitas leis-, é contra uma lei muito maior, que é a lei humanitária; não poderiam ter esperado chegar a um porto e entregá-lo às autoridades?

O que fizeram com ele foi pior do que um assassinato.

Fico imaginando o tamanho da solidão -da solidão e do medo- de um homem no meio do oceano, sem ter noção de onde está, sabendo que só um milagre poderá salvá-lo (isso se antes do milagre ele não morrer de sede, de fome, ou mesmo afogado). Nessas 12 horas, quais terão sido seus pensamentos?

Terá lembrado da infância, da família? Terá se arrependido de ter largado tudo em busca de uma vida melhor? E um pensamento banal me atormenta: seria noite ou dia, quando ele foi jogado ao mar? E sua agonia, quando viu lá longe o navio chileno que o resgatou, pensando que podia não ser visto -e podia mesmo; não, não dá nem para imaginar.

Existem crimes bárbaros, por ciúmes, raiva, vingança, que por piores que sejam, com algum esforço, dá para entender; não justificar, mas entender. Mas jogar um homem no meio do oceano porque ele não tinha no bolso uma passagem é fora de qualquer compreensão.

Mas ele foi salvo, e qualquer coisa que lhe tenha acontecido -a deportação, a prisão-, nada pode ter sido pior do que as horas que passou no mar, e penso que depois disso ele não terá medo de mais nada.

Só dos homens, e do que eles são capazes.

danuza.leao@uol.com.br

Carlos Heitor Cony

Astros e ostras

RIO DE JANEIRO - Retorno a um assunto que abordei recentemente: a necessidade de um aprimoramento da democracia representativa. Agora mesmo, uma pesquisa feita no Ceará e publicada num jornal de Fortaleza revela que mais de 70% dos eleitores já foram abordados por candidatos e seus cabos eleitorais que ofereceram dinheiro em troca de votos. Desse total, uma porcentagem significativa topou a oferta.

Deve-se acrescentar a grande parcela do eleitorado que troca o voto por benefícios específicos, promessas de emprego, casa própria, tratamento de saúde e até dentaduras. Nada de admirar que a corrupção escancarada no julgamento do mensalão, em diferentes níveis, tenha chegado ao ponto a que chegou, com a compra de votos dos próprios parlamentares para a formação de eventuais maiorias no Congresso.

Na presente campanha eleitoral dos Estados Unidos, os astros democratas e republicanos já gastaram bilhões de dólares arrecadados em forma de compromissos que deverão ser honrados pelos eleitos.

Não é caso para discutir a democracia em si, mas a forma pela qual ela é exercida para legitimar o exercício do poder. Afinal, o processo de votar -seja em cascas de ostras, como na Grécia antiga (que consagrou a palavra "ostracismo"), seja em cédulas de papel ou em impulsos nas urnas eletrônicas- precisa ser substituído por outra forma de captar o poder que vem do povo, princípio fundamental da própria democracia.

A humanidade chegou à Lua, ao celular, ao transplante de órgãos e a outras façanhas julgadas impossíveis. Seria o caso de juntar 10 ou 12 agraciados com o Nobel ou criar um prêmio internacional (e bem substancioso) para o gênio ou o grupo de gênios que bolasse outra forma de exercício democrático.


30 de setembro de 2012 | N° 17208
VERISSIMO

A nobre irmandade

O fogo era a televisão da pré-história, com uma programação muito melhor

Tese: o clima frio favoreceu o crescimento de civilizações mais avançadas porque os habitantes de climas frios passavam mais tempo contemplando o fogo. Os povos de climas quentes tinham menos necessidade de fogo para aquecê-los, por isso foram privados das divagações que vêm com a contemplação do fogo e são menos filosóficos e mais superficiais. Nos climas frios, de tanto olhar as chamas qualquer pessoa acabaria desenvolvendo, se não escatologias ou sistemas ontológicos completos, pelo menos teorias.

Os povos de clima quente têm a experiência direta do sol na cabeça, os de clima frio experimentavam o sol armazenado na madeira, portanto o sol intermediado, reciclado pelo tempo. O fogo armazenado é o sol de segunda mão, quase uma versão literária. Olhar para o sol transformado em fogo domesticado leva a abstrações e ponderações, olhar para o sol original leva à cegueira.

Mas tanto o sol vivo no céu quanto o sol ressuscitado no fogo podem destruir o cérebro, um fritando-o e outro levando-o para tão longe que ele quase se eteriza. Não há Einsteins em regiões tropicais, mas também não há muitos cientistas loucos. Abstrações e ponderações em overdose também podem ser fatais. Contemplar muito o fogo também enlouquece.

A combustão da madeira, sendo consumida pelo fogo do sol que absorveu a vida toda, é uma metáfora para a existência: você também é consumido pelo que lhe dá energia – mais ou menos rapidamente, dependendo de ser graveto ou nó de pinho. Se envelhecer é ir ficando cada vez mais grave, só atingiremos nossa verdadeira seriedade depois de mortos, quando nos juntaremos aos fósseis. Também levaremos energia aprisionada para baixo da terra e seremos como o carvão, o petróleo e os restos degradados de tudo que já viveu, integrados na capa explosiva do planeta – o que pode ser mais sério?

Toda matéria orgânica, da jabuticaba ao Papa, almeja isso, essa respeitabilidade subterrânea, essa dignidade de mineral depois da frivolidade efêmera da vida. Do barro viemos e ao barro voltaremos, mas agora em outra categoria, depois da nossa temporada ao sol: a de combustível. Entendo quem prefira a cremação (que é quando a nossa identificação com lenha fica mais completa), mas eu quero tudo a que tenho direito depois de morto. Decomposição, gazes – enfim, minha iniciação na nobre irmandade dos inflamáveis.

Olhar o fogo devia inflamar a imaginação de quem o contemplava, no tempo das cavernas, e via nele fantasmas e presságios. O fogo era, de certa forma, a televisão da pré-história – com uma programação muito melhor.


30 de setembro de 2012 | N° 17208QUASE PERFEITO |
Fabrício Carpinejar

Quando o namorado é um para-raios

“Tenho um grupo de amigas e nos encontramos para falar mal dos maridos e namorados. Meu namorado gosta delas, já saímos juntos, mas elas não suportam a ideia: aqui menino não entra! Largo o grupo ou largo meu namorado no sofá junto com os outros maridos chatos? O que você acha? Obrigada! Franciele.”

Querida Franciele,

Você não deve levar seu namorado. É criar uma indisposição natural entre as amigas. A motivação do encontro é justamente criticar os relacionamentos com leveza e desembaraço.

Não é a primeira que enfrenta o dilema, os demais maridos e companheiros devem fazer pressão. Mas nenhuma abre mão dessa terapia da amizade. Nem caberia. É uma magia branca fundamental. Tranquilizante saber que outros experimentam problemas iguais. Quando a dor perde a exclusividade, ela diminui de tamanho.

Temos que dissociar o círculo dos amigos do quadrado amoroso. Manter um pouco da vida de solteira para não se sentir asfixiada pelo namoro – são os amigos que nos amparam na separação e nos ajudam na reconciliação. Pense como seria desgastante se aparecesse para assistir qualquer jogo de futebol de seu namorado. Ficasse parada na arquibancada e depois seguisse para testemunhar as trovas do churrasco.

A situação também favorece um terror psicológico: não existe como ficar à vontade com ele presente. Se ele permanecer quieto, tentará incluí-lo na conversa Se estiver falando sem parar, temerá que ele possa desagradar.

Não é que deixou de pertencer ao grupo, está sendo desagradável impondo uma exceção.

No fundo, sabe o que acho? Não deseja falar de seu romance e expor seu início de relacionamento. Como estava solteira, não tinha motivos para ser criticada. Agora, teme que alguém brinque com seu conto de fadas.

Ele é seu para-raios.

Colete à prova de bobagens

“Tenho 19 anos, namoro há quatro com um rapaz de 21 anos. Eu o amo muito, e o excesso atrapalha. O problema é que ele fez algumas coisas que me magoaram bastante. Não consigo esquecer. Três vezes me disse que estava interessado em outra pessoa. Isso me deixou muito insegura e bastante ciumenta. Enfim, fico remoendo, não confio mais! Um beijo, Eduarda”

Querida Eduarda,

Palavras de festim matam o relacionamento mais do que palavras de verdade.

São provocações à toa, bobinhas, desnecessárias, que ferem com violência porque ambos estão desatentos.

É uma brincadeira com a aparência, um comentário sobre o passado e feito o estrago.

O que parecia ser passageiro demora uma noite, dias, semanas, e nunca mais sai da alma.

Eu temo a discussão ridícula. É a que mais causa a mortandade do amor.

Ele confessou que estava interessado por outras, não que teve uma história.

Óbvio que era uma observação infantil para produzir ciúme. Nem sei se é real. Não precisava ter caído na armadilha, preocupou-se como se fosse uma ameaça.

Poderia brincar que estava atraída por outros sujeitos. E ele iria ruir, e desistir das chantagens para conseguir ainda mais carinho, compreensão e amor.

O que vem acontecendo com vocês é que não admitem a ideia de terem se apaixonado tão jovens. Entraram num jogo diabólico de maltrato.

Como não têm antecedentes de infidelidade, inventam situações, personagens e cenários para ver como reagiriam se isso acontecesse.

É um delírio a dois. Ele percebe que é ciumenta e larga mais corda para se enforcar. Você percebe que ele odeia pressão e intensifica a patrulha.

Não é salutar expor todos os pensamentos para seu par, muito menos cobrar que ele fale quando mergulha em silêncio.

Guarde algo para si. Selecione o que contar. Aceite que ele realize o mesmo.

Franqueza não é descarregar preguiçosamente a mente. É escolher o melhor a ser dito e a melhor hora de dizer. 

sábado, 29 de setembro de 2012



29 de setembro de 2012 | N° 17207PESQUEIRO |
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Nós, os gaúchos

No encerramento de mais um mês de comemorações festivas do tradicionalismo gauchesco, me ocorre evocar aqui um aniversário de 20 anos: em 1992, segundo semestre, foi lançado, pela Editora da UFRGS, um volume de ensaios chamado Nós, os Gaúchos. Acabou sendo o primeiro de uma série de cinco volumes (Nós, os Gaúchos II, Nós, os Teutogaúchos, Nós, os Afrogaúchos e Nós, os Italogaúchos). Cheguei a conceber um sexto volume, que se chamaria Nós, os Neogaúchos, junto com o paulista, aqui residente, José do Nascimento Júnior, mas o plano foi abortado pela mesma editora (e, olha, o volume ia ficar bacana).

O livro foi muito vendido naquele ano e nos seguintes, tendo alcançado quatro edições; foi adotado em cursos da área de Humanidades e circulou bastante por agências de publicidade e em empresas que buscavam informações sobre o temperamento local. E não era para menos, digo com vaidade e certa cabotinice, porque fui um dos organizadores do livro, junto com Sergius Gonzaga, meu colega, que era na altura diretor da Editora da UFRGS e agora é secretário de Cultura de Porto Alegre.

O nascimento foi trivial. Certo dia, estava eu de papo com Poti Campos, na então livraria de seu pai, Arnaldo Campos, no Campus Central da UFRGS. (Bom tempo aquele em que a universidade federal tinha uma livraria no Campus Central.) E foi o Poti quem observou que naquele ano estavam saindo alguns artigos bem interessantes sobre coisas características da cultura do Estado.

Era uma nova rodada, uma nova geração de pensamento sobre esse nó identitário e histórico, tão interessante quanto, por vezes, aborrecido, que se expressa na forma de orgulho e bravata assim como na forma de crítica e mesmo de condenação ideológica. E perguntou o Poti: por que eu não organizava um livro sobre o tema? Apresentei ao Sergius a ideia, que foi imediatamente aceita. Mãos à obra, então.

Nota de época: em 1992 a internet não existia (só em rede universitária, usada por meia dúzia). Apenas em 1995 foi criada a internet comercial (um exemplo concreto: o UOL começou a funcionar em 1996, dia 28 de abril). Outra nota: ninguém tinha ainda telefone celular, aqui no estado (no Rio começou a circular em 1990). Então, entramos em contato com amigos e conhecidos, assim como com gente mais distante, sempre por telefone, para encomendar um texto que pensasse, de modo não óbvio, sobre o jeito de ser dos gaúchos.

Acontecimentos maiúsculos

O mundo era bem diferente vinte anos atrás. Vejamos alguns marcos. Naquele ano ocorreu a assinatura do Tratado da União Europeia, marco do inédito grau de integração entre as nações do Velho Continente (isso no bafo quente do fim da União Soviética, no ano anterior, o que já tinha sido motivo suficiente para perceber que o mundo havia mudado muito). Por outro lado, e não sem certo atraso, a Igreja Católica perdoou Galileu Galilei (1564 – 1642). De qual pecado, mesmo?

No Brasil, muita coisa apontava para mudança também. Em relação à Europa unificada e aos ventos promissores de integração, valerá lembrar que saiu no Brasil a tradução de um excelente livro de Robert Kurz, O Colapso da Modernização, em que o otimismo liberal que se congratulava pelo fim do comunismo era examinado à luz de um marxismo ainda muito eficaz. Era o contraponto ao ensaio de Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, editado no Brasil no mesmo 1992.

No plano político imediato, ocorreu o impeachment de Collor, com a subsequente ascensão de Itamar Franco (e de um seu ministro cheio de apetite, Fernando Henrique Cardoso, ainda esquentando o motor para os futuros oito anos de gestão). O país sediou a famosa Eco 92, a também inédita cúpula mundial sobre clima e ambiente. Não menos impactante foi o horror do Massacre do Carandiru, 111 presos indefesos chacinados com impiedade da PM paulista.

No Rio Grande do Sul, mais modestamente, devemos anotar a visita do Dalai Lama e uma rara reeleição em Porto Alegre, o mesmo partido, o PT, engrenando a segunda de quatro gestões sucessivas na prefeitura. E aqui, talvez mais do que em outras partes do Brasil, ganhava corpo o sonho de integração regional na forma do Mercosul, que no ano anterior, 91, tinha ganhado a primeira cara visível, com o Tratado de Foz do Iguaçu, o primeiro documento a englobar os quatro países-membros originais.

Para dizer de modo breve: 1992 foi uma evidência de que ingressávamos em outro momento histórico, posterior à Guerra Fria, esta o ambiente e horizonte histórico em que tudo havia se movido desde a Segunda Guerra. O termo “pós-modernismo” ganhava destaque, e falava-se em “globalização” ainda com ressalvas e enormes interrogações, porque as barreiras nacionais à circulação de bens, serviços e pessoas eram ainda firmes e fortes. Quem podia prever que ruiriam com tanta velocidade?

Pensar o local em época global

Pois foi justamente neste momento, que se poderá qualificar como globalizante sem muita dificuldade, que nasceu Nós, os Gaúchos. Reação ao fenômeno europeu? Caipirice? Da parte dos organizadores, não havia qualquer intenção restauracionista, nem mesmo saudosista; pelo contrário, o caso era tomar uma atitude freudiana, de discutir o tema para justamente tentar entendê-lo criticamente, com distância.

Não é possível citar todos os colaboradores que aceitaram o convite: foram ao todo 58 pessoas, que resultaram em 55 textos, de grande valor até agora, numa organização em oito seções – lembro com clareza da tarde em que o Sergius e eu, tomando um cafezinho na Editora, repassamos os textos e os agrupamos por afinidades temáticas, bolando para cada conjunto um título: Nós e o Resto do Mundo; Nós Quem?; Então nos Pilchamos; No Tropel da Memória; Sentinelas de Quê?; Fandango da Cultura; A Cidade que Não Está no Mapa; e, finalmente, Atrás da Alma Macanuda.

Uma lista eloquente é a dos colaboradores agora já falecidos. São eles: Sandra Pesavento, Décio Freitas, Rovílio Costa, Oliveira Silveira, Barbosa Lessa, Carlos Reverbel, Nelson Werneck Sodré, Arnaldo Campos, Luiz Pilla Vares, Mozart Pereira Soares, Paulo Hecker Filho, Cyro Martins, Moacyr Scliar. Sem dificuldade o leitor pode imaginar o valor da contribuição de cada um deles, todos inteligentes e com coisa a dizer, inclusive o carioca Werneck Sodré, que recordou em seu texto dos cinco anos que passou em Cruz Alta, a partir de 1950.

Dá vontade de comparar aquele ano com o presente, perguntando se as reflexões de então caberiam a 2012. Sim? Melhoramos ou pioramos? Em grande parte, o tempo não parece ter passado.

Por exemplo: no livro se manifestaram vozes identificadas com o Tradicionalismo, como Barbosa Lessa e Nico Fagundes, assim como gente notoriamente crítica a ele, como José Hildebrando Dacanal e Tau Golin. Debate vivo ainda. Mas também no livro foi impressa a primeira versão da Estética do Frio, de Vitor Ramil, texto de impressionante impacto de então em diante, assim como um texto agudo de Luciano Alabarse sobre certo traço autodestrutivo da vida mental gaúcha.

O livro mantém atualidade, em geral. A globalização prometida em 92 já deu algumas voltas no planeta, teve alguns solavancos e encontra agora a China e o Brasil como protagonistas no planeta – nada que pudesse ser pensado com clareza vinte anos atrás, quando o Brasil importava pouco (nos dois sentidos da frase), e do Oriente extremo só se ouvia a voz do Japão e dos Tigres Asiáticos.

A fantasia liberal de que estava tudo resolvido e havíamos chegado ao fim da história revelou-se uma tolice; em contrapartida a esquerda não conseguiu formular um novo modelo de sociedade para além do verdismo, da sustentabilidade, do combate à corrupção, nos melhores casos.

Aqui no Estado, muito fizemos de bom de lá para cá. Pense o leitor no Porto Alegre Em Cena, que iniciou em 94; na revelação pública do talento do cientista e pensador Ivan Izquierdo, ocorrida em 95;

na Bienal do Mercosul, com primeira edição em 97; no primeiro Fórum Social Mundial, em 2001,que botou Porto Alegre num mapa planetário inédito; na invenção do StudioClio em 2005 e do Fronteiras do Pensamento em 2006; na quantidade apreciável de CDs, exposições e livros (muitos escritores publicam direto fora daqui, desde então). Não, não foi só a adesão ao Tradicionalismo que cresceu, e nem só ele representa reação contra a macdonaldização do mundo.


29 de setembro de 2012 | N° 17207
NILSON SOUZA

Abro meus votos

Não sei ainda em quem vou votar, mas certamente não será em candidatos que atrapalham a minha visão de motorista nas rótulas e nos cruzamentos da cidade, com seus retratos de sorriso forçado.

Também não vou digitar na urna eletrônica o número dos engraçadinhos, dos maus poetas, dos folclóricos, dos que usam artifícios e trocadilhos para aparecer mais do que os outros na propaganda oficial. Pretendo, igualmente, ignorar aqueles que fazem promessas absurdas ou que desfazem tudo o que seus oponentes realizam ou realizaram. Sobra alguém?

Sobra, certamente. Nesta semana que ainda falta para o dia da votação, vou reexaminar as informações de que disponho dos pretendentes a cargos públicos que já passaram pelo teste do “não”, a fim de eleger a dezena de minha preferência para o Paço Municipal e os cinco dígitos daquele que poderá me representar na Câmara de Vereadores.

Respeito quem vota em branco, mas sou pragmático demais para protestar desta maneira. Se eu não escolher, alguém escolherá por mim – e aí, sim, terei que me conformar com o que vier. Prefiro errar com os meus próprios dedos.

Quem sabe, não acerto? Talvez eu seja um crédulo fora de moda, mas continuo achando que temos homens e mulheres honrados na política, assim como em qualquer outra atividade. E acredito, acima de tudo, nesta fórmula engenhosa que permite a cada cidadão conversar apenas com a sua consciência antes de decidir o que fazer com o seu direito de votar.

Trago este sentimento da infância, quando via meu pai vestir a sua melhor roupa e colocar gravata para se dirigir à urna. Ele era um homem de pouca instrução, jamais o ouvi pronunciar a palavra democracia, mas sua atitude nos dias de pleito expressava bem o orgulho de se sentir uma pessoa livre e importante para o país.

Meus votos, portanto, serão depositados neste sonho e nesta crença de que somos cidadãos plenos, empoderados de liberdade para gerir nossos próprios destinos. Não importa os números e os nomes que vamos escolher.

Importa, mesmo, é saber por que estamos votando. Importa, especialmente, votarmos com a convicção de que este gesto simples de escolher – e acreditar na escolha – contribui para o engrandecimento do nosso país. Abro meus votos, sim. Sem gravata, mas com o mesmo orgulho ancestral, votarei no direito de votar, que não é só meu, mas de todos os brasileiros.


29 de setembro de 2012 | N° 17207
PAULO SANT’ANA

Chovem condenações

Eu não esperava, eu era cético, mas estou errando em minhas previsões sobre se iria haver muitas condenações no julgamento do mensalão.

Já estão definitivamente condenados vários réus, com votos de seis ministros do Supremo, quase todos por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Mas as três grandes estrelas entre os réus do mensalão, Delúbio Soares, o então tesoureiro do PT, o ex-deputado federal José Genoino, então presidente do PT, e o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, ainda não foram julgadas.

Toda a grande atenção sobre o julgamento será concentrada sobre esses três nomes destacados do PT de então.

Delúbio Soares será certamente condenado. Ele é réu confesso e indicava os parlamentares de diversos partidos que tinham de ser subornados para votar favoravelmente nos projetos do governo.

Mas certamente haverá votos divergentes entre os ministros do Supremo sobre a sorte de José Genoino e José Dirceu.

Não há prova material alguma contra José Dirceu, embora sejam exuberantes as provas testemunhais incriminadoras do ex-ministro.

Nesse julgamento é que se consagrará, ou não, a tese de que as provas testemunhais são suficientes para uma condenação. Esse será o grande vetor de atração do julgamento.

Vão sair faíscas.

Outra curiosidade sobre o julgamento é se os réus que já estão condenados e os que vierem também a sê-lo cumprirão pena de prisão privativa da liberdade ou serão brindados com benefícios penais que lhes proporcionem cumprir as penas soltos.

Os fatos que marcaram o mensalão foram tão graves, que vários setores da imprensa especulam que a pena de Marcos Valério, o publicitário que distribuiu o dinheiro público aos mensaleiros, quase sempre por indicação de Delúbio Soares, receberá pena superior a cem anos de prisão.

Credo em cruz, como se atolou nesses processo o Marcos Valério, que recentemente declarou que o dinheiro público que foi movimentado nas operações de suborno somava R$ 350 milhões, quantia que foi calculada em sete vezes menor no desenvolvimento do inquérito e do processo.

Não há dúvida de que o mensalão se tornará o mais propalado processo penal de toda a história brasileira.

Tanto pelas mais de três dezenas de réus, quanto pela repercussão de que foi cercado em face de o cenário do processo ter girado em torno de esferas importantes da República.

E, quanto aos que receavam que o transcurso do julgamento poderia influenciar o resultado das eleições do próximo dia 7 de outubro, com muita gente tendo tentado adiar o julgamento por esse motivo, vários réus já foram condenados, faltando só saber-se quais penas receberão, mas não se nota nenhuma influência do julgamento na campanha eleitoral.

Os fatos e sua repercussão podem ter alguma influência, mas o julgamento, nenhuma.


29 de setembro de 2012 | N° 17207
CLÁUDIA LAITANO

Nós, os endividados

Tenho um amigo que costuma dizer que sempre termina o dia com a sensação do “dever comprido” (assim, com “o” mesmo): encrencas para desencrencar, e-mails para responder, gentilezas a retribuir e, claro, contas a pagar. Tudo isso acumulando-se em gavetas, reais ou imaginárias, à espera de um despachante organizado e eficiente para dar conta justamente daquelas tarefas que ninguém pode fazer por nós.

O fato de podermos ser cobrados concreta ou figurativamente o tempo todo pelo celular – inclusive quando estamos de folga ou viajando – torna ainda mais aguda essa permanente sensação de que não estamos dando conta. Devo, logo existo.

No Brasil, a impressão de que sempre estamos devendo alguma coisa para alguém não é apenas uma abstração metafórica que reflete o ritmo hiperacelerado da vida nas grandes cidades. Os brasileiros nunca estiveram com o dever tão comprido como agora. A combinação de alguma folga no orçamento, crédito fácil (empréstimos são oferecidos na caixa da loja onde você está pagando uma conta ou mesmo por torpedo no celular) e uma vocação reprimida para o consumismo transformaram o Brasil em um país de endividados crônicos.

O curioso é que a dívida nem sempre é percebida com mal-estar pelos próprios enforcados. O mortífero parcelamento da fatura do cartão de crédito, o cheque especial, os juros embutidos nas prestações de um eletrodoméstico, tudo do que os economistas dizem para os consumidores fugirem como cardíaco de gordura trans foi incorporado ao cotidiano das famílias como se fosse muito natural esse milagre mensal da multiplicação do salário: entram mil reais de um lado, saem 5 mil em traquitanas do outro.

Se a corrupção endêmica denuncia nossa histórica dificuldade para distinguir o público do privado, o endividamento crônico provavelmente também é a expressão de algum traço do caráter nacional que estava em modo repouso e se acendeu com a recente onda de prosperidade do país. No livro O Valor do Amanhã (2005), o economista Eduardo Giannetti já mostrava como certos aspectos da nossa vida, muito além do orçamento familiar, operam segundo a lógica do “isto agora ou aquilo depois?”.

Quando nos colocamos na posição credora, escolhemos pagar antes e viver depois: fazendo uma dieta pra caber no biquíni no verão, estudando para passar de ano ou ganhar um diploma, economizando para uma aposentadoria mais tranquila. Na posição devedora, vivemos agora e pagamos quando for possível – e é aqui que entram o cartão de crédito, o cheque especial e todos aqueles pequenos ou grandes luxos com os quais nos presenteamos de vez em quando simplesmente porque a gente acha que merece agora e não daqui a pouco.

Algumas culturas apostam tanto no futuro, que o presente torna-se mais árduo e opaco do que o necessário. Outras estão tão focadas na recompensa imediata que o futuro e as contas sempre parecem inesperados quando finalmente chegam – e sempre chegam.

O Brasil, que já foi o país do futuro, está se tornando o país do eterno presente. E das dívidas eternamente acumuladas.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012



Campanha política

O Mario Quintana, sempre ele, definitivo, escreveu que não existe nada mais encantador do que esses sorrisos de candidato. Ele foi candidato à Academia Brasileira de Letras e, apesar dos seus sorrisos e dos seus versos que estão cada vez melhores, tipo a voz do Carlos Gardel, não foi eleito.

Pior para a Academia, que saiu perdendo feio. Melhor para nós, que ganhamos os famosos versos: todos esses que aí estão / atravancando meu caminho/ eles passarão / eu passarinho. Pensando bem, ter sido barrado na ABL até deu um upgrade no currículo do poeta. Ele nem precisava, está para sempre na boca e no coração do povo, nas ruas, nos muros e nas praças, os melhores lugares para um Homem de Letras.

Mas falando em sorrisos e campanhas, hoje assisti ao programa eleitoral da TV. Assisti todo, pois sou democrático. Cores claras, cenários coloridos, sorrisos, muitas, muitas emoções, muitas promessas e ótimo mercado para roteiristas, publicitários, redatores, cabeleireiros, maquiadores e pessoas de marketing. Trilha sonora caprichada, improvisos bem decorados e papos motivacionais até me comoveram um pouco, enquanto eu fazia ginástica na esteira.

Sei lá, no fundo, apesar de tudo e das minhas décadas de existência, me recuso a não acreditar, de todo, na política e nos políticos. Não tenho mais o otimismo e o vigor dos meus trinta anos, quando fui para a praça berrar pelas Diretas Já! Mas ainda procuro fazer bater um coração de estudante lá no fundo do peito e tenho esperanças de que, no fim, dá tudo certo.

Se não deu é porque não chegou ao fim, como dizia o outro. Não gosto de pensar que política é apenas arte do possível, negócio, teatrão e não sei mais o quê. Não gosto de pensar, apenas, como o outro, que a gente troca os políticos pela mesma razão que troca as fraldas de um bebê. Estamos todos juntos, misturados, tentando as melhores escolhas e procurando seguir os melhores caminhos.

Claro que é complicado, que o mundo está cada vez mais doido, que a gente vai envelhecendo. Pois é, sempre é bom lembrar que a alternativa para não ir adiante e envelhecer é bem pior. Ninguém quer a morte, só saúde e sorte, como diz a canção. Sorte e saúde para nós, todos, eleitores e candidatos. Sorte, saúde, segurança e educação.

Acho que nunca precisamos tanto de sorte. Não há de faltar, né? Nem penso e muito menos escrevo a palavrinha aquela que significa o contrário de sorte. E tomara que a morte morra. De morte morrida e matada, para sempre.
(Jaime Cimenti)


Cinco mulheres diferentes em Portugal nos anos 1980

A escritora portuguesa Lídia Jorge nasceu em Algarve, em 1946. De sua vasta obra, destacam-se os romances O dia dos prodígios (1980), O cais das merendas (1982), Notícia da cidade silvestre (1984), Vale da paixão (1998) e O vento assobiando nas gruas (2002). Por sua importante produção, que já se destaca na literatura portuguesa contemporânea, a escritora recebeu o prêmio Albatros (2006) da Fundação Günter Grass, na Alemanha, e o Grande Prêmio Sociedade Portuguesa de Autores - Millenium BCP, entre muitos outros.

Sua obra tem sido traduzida em muitos países, com sucesso de crítica e de público. O novo romance da autora, A noite das mulheres cantoras, acaba de ser lançado no Brasil pela Leya (320 páginas, R$ 44,90). A narrativa caudalosa e rica como outras da literatura de Portugal das últimas décadas tem, como cenário, Portugal nos anos 1980. Cinco mulheres diferentes, formadoras de um grupo musical - Gisela, Maria, Nani, Madalena e Solange -, se encontraram e se separam. 

Solange de Matos, a protagonista, durante o reencontro com o antigo grupo, revive velhas emoções. Fatos ocorridos há 21 anos deixaram lacunas no coração de Solange e marcaram um período de renúncias e sacrifícios por um ideal, por uma perspectiva. Num determinado momento, Gisela, a líder do grupo, a mais obsessiva pela fama e pelo sucesso e a mais apta a abandonar tudo por eles, deu uma ordem.

Falou que entre as cantoras não haveria mais amores, nem pancadarias, nem acasalamentos, nem sonhos, que todos os sonhos teriam de estar colocados nas pautas que estavam pousadas sobre a tampa do piano. Uma revelação de Gisela e um inesperado encontro com um homem do passado de Solange, João Lucena, mudam os rumos da noite misteriosa e cheia de magia de Solange. A trama é narrada a partir do ponto de vista de Solange e de sua memória que, com o tempo, pode ser traiçoeira.

O livro, além de memorialístico, transforma-se em um denso romance psicológico. A narrativa transporta os leitores para uma época aparentemente glamurosa, mas que por trás de todo o brilho, escondia brigas, disputas de poder e intrigas, acobertadas por um  belo sorriso e por uma apresentação digna de espetáculo, que tempo nenhum ousa apagar. Solange não se deixou seduzir pelas palavras de Gisela e envolveu-se profundamente com o coreógrafo. As músicas de sua autoria tinham de ser assinadas com um nome masculino. A banda precisava de uma retaguarda masculina para sobreviver.

Seis personagens, uma história de amor comovente, a luta entre o individual e o coletivo e as questões sociais demonstram, uma vez mais, a força da ficção de Lídia Jorge, já muito conhecida e apreciada pelos leitores brasileiros.

Jaime cimenti


28 de setembro de 2012 | N° 17206
EDITORIAIS ZH

CRIMES CIBERNÉTICOS

A ordem de prisão contra o diretor-geral da Google no Brasil, que não acatou decisão j udicial para retirar material da internet, repercute em todo o mundo como uma agressão à liberdade de expressão e evidencia a urgência de uma legislação clara a respeito de crimes cibernéticos. A lei eleitoral, assim como os códigos criminais que estão sendo reformulados, colide com a atual realidade tecnológica, que permite a qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, divulgar conteúdos lícitos ou ilícitos.

Sem um regramento específico, as próprias autoridades judiciais enfrentam dificuldade para aplicar punições aos infratores – como foi o caso de Campo Grande (MS), onde o magistrado acabou revogando a própria ordem de prisão. Como problemas semelhantes persistem em mais de duas dezenas de Estados, o resultado prático é uma sensação generalizada de insegurança jurídica, incompatível com um país compromissado com a democracia e com a liberdade de expressão.

Na falta de uma legislação objetiva e transparente, o entendimento predominante no Judiciá-rio brasileiro tem sido o de que os provedores não são responsáveis pela fiscalização prévia do conteúdo veiculado através de seus serviços. Ainda assim, são considerados corresponsáveis pelo ilícito se não tomarem providências depois de serem notificados judicialmente, como ocorreu no caso de Campo Grande. O enquadramento é feito com base em crimes de desobediência às determinações da Justiça Eleitoral.

Embora os representantes dos provedores insistam na tese de que quem deve ser responsabilizado, nessas situações, são os autores da postagem de conteú- do, nada justifica o descumprimento de uma decisão judicial.

Essas visões antagônicas entre quem defende ampla liberdade da circulação de informações na internet e quem se preocupa permanentemente em cerceá-la deveriam se constituir numa preocupação central de todos os defensores da democracia, mas também dos legisladores, dos quais se espera que consigam definir parâmetros claros nessa área.

Assim como ocorre no caso das eleições municipais, plataformas como o YouTube, controlada pela Google, vêm desempenhando um papel relevante em favor da democracia e das liberdades, como é o caso dos movimentos populares nos países árabes. No Brasil, onde é crescente a preocupação com a transparência dos atos do setor público, as ferramentas tecnológicas exercem papel cada vez mais relevante, graças à massificação e à facilidade do uso. O que falta para potencializar os ganhos é uma definição dos limites e das responsabilidades.

Ainda que o tema seja de extrema complexidade, pois o mundo virtual não tem fronteiras, o Congresso está devendo este esforço para reduzir a insegurança jurídica na rede, votando de vez o Marco Civil da Internet e cuidando para que não se transforme em instrumento de censura e controle estatal. A definição de direitos e deveres de internautas, provedores e governantes é essencial para as novas tecnologias garantirem mais transparência e liberdade.

O Congresso precisa fazer a sua parte para reduzir a insegurança jurídica na rede, votando de vez o Marco Civil da Internet. A definição de direitos e deveres de internautas, provedores e governantes é essencial para as novas tecnologias garantirem mais transparência e liberdade.


28 de setembro de 2012 | N° 17206
PAULO SANT’ANA

O mel e o caviar

As abelhas nos fornecem o mel, um dos mais nutritivos alimentos para os homens.

O esturjão é um peixe cujas ovas não fertilizadas se constituem no caviar, uma das delícias alimentares mais estupendas e que custa caro como o diabo.

A vaca alimenta com seu leite a humanidade inteira, e o leite de cabra, além de nutritivo, se presta a inúmeras utilidades para o tratamento estético da pele.

Além disso, o gado bovino, o suíno, o ovino e o caprino servem carne para todas as coletividades humanas, servem queijos, salames, presuntos e outras iguarias para os homens.

Estou traçando essas singelas linhas apenas para salientar a importância dos animais para a humanidade.

A galinha, por exemplo, é uma ave que alimenta o mundo inteiro, não só nos quintais mas em quantidade colossal de exportação. No caso do Brasil, são elevadas as divisas que nosso país alcança com sua remessa comercial para o estrangeiro.

Além disso, as galinhas nos fornecem uma das fontes nutricionais mais ricas e proverbiais: os ovos.

No caso dos cães, os benefícios que os homens deles usufruem são de outra natureza: sentimental.

O equilíbrio emocional que os homens têm muitas vezes deriva das relações de amizade entre os cães e seus donos, sendo até aconselhado por psiquiatras e psicólogos que pessoas portadoras de distúrbios emocionais ou mentais adquiram um cão para lhes fazer companhia, com o que aqueles desvios serão atenuados ou muitas vezes extintos.

Quanto ao cavalo, a sua ligação umbilical com o homem chegou ao ponto de na Roma Antiga o imperador Calígula ter nomeado o seu cavalo preferido, Incitatus, senador da República, chegando quase a designá-lo cônsul.

O cavalo é certo que serviu ancestralmente para o transporte de materiais e cargas, foi fundamental para as guerras, serve ainda hoje em muitas cidades para o policiamento das ruas e de eventos.

E serve ainda o cavalo para diversão e esporte dos homens, no caso dos amantes do turfe e do hipismo. Ocorre-me neste instante que o único animal que participa da Olimpíada é o cavalo, daí que se cogita com justiça e adequação que no hipismo as medalhas de ouro, prata e bronze não deveriam ser tributadas aos cavaleiros, mas aos cavalos, pelo descomunal esforço e talento que desenvolvem nas competições.

Os animais, tanto como serviçais quanto como mascotes dos homens, além de insumos alimentares e proteção para o frio com seus couros, são principalmente grandes companheiros e camaradas dos humanos, tornando-se assim essenciais para a vida sobre a Terra.

Por isso é que desde a escola temos de aprender a nutrir grande amor e respeito pelos animais.

Temos de venerar até mesmo as serpentes venenosas, os pitbulls e rottweilers que se desgarram da civilidade e assassinam homens.

Por isso é que na Constituição brasileira está inscrito um artigo que impede os homens de extinguir quaisquer espécies animais.

Creio que a nossa Constituição, assim, não considera os insetos como animais, desde que a destruição da formigas e dos gafanhotos (os das pragas nas lavouras) é corrente em todas as latitudes nacionais.


28 de setembro de 2012 | N° 17206
DAVID COIMBRA

Quando descobri a internet

Internet é coisa de jovem, mas a primeira pessoa que me falou sobre sua existência foi um cara que respira neste Vale de Lágrimas pelo menos uma década antes de mim: o velho lobo da imprensa Carlos Wagner. Isso se deu lá nos albores dos anos 90. Wagner, o repórter mais premiado do Brasil, me pegou na redação e contou, entusiasmado, que estava participando de uma rede virtual entre universidades que, em algum tempo, transformaria o mundo. O mundo! Ouvi, algo distraído, e saí para fazer minha pauta. Transformar o mundo. Sei.

Veja você como a gente deve prestar atenção no que diz um velho lobo da imprensa.

Li outro dia que apenas 18% das pessoas com 50 anos ou mais usam a internet. Coisa de jovem. Compreensível. As pessoas, depois das aventuras e desventuras da juventude, adotam uma forma de viver, cultivam hábitos, aferram-se a eles. Aí, quando tudo está bem posto, surge uma novidade que lhes exige o esforço do aprendizado. Mais trabalho. Exatamente no momento em que elas planejavam, tão somente, fruir a existência.

Sacanagem.

Eu aqui não cultivo preconceitos em relação à internet. Não tenho tuíter, não tenho Facebook, estou reduzindo a leitura de e-mails a menos de meia hora, e só nos dias úteis, mas não faço tais restrições por achar a internet algo ruim. Ao contrário, é algo bom. Mas toma tempo. Trata-se de uma questão de prioridades.

A internet é uma ferramenta, nada mais. Pode ser bem ou mal usada, como qualquer ferramenta.

Tempos atrás, discuti por e-mail com um estudante de Letras. Ele foi arrogante, e decidi dar-lhe uma resposta no mesmo tom. Ele postou minha resposta nas chamadas “redes sociais”. Quer dizer: tornou pública uma correspondência pessoal. Depois disso, reavaliei meu relacionamento virtual com leitores.

Também aprendi que, às vezes, o que está na internet só tem importância na internet. Fora dali, no mundo real, aquilo que pulsa e freme na internet inexiste. É zero. Torna-se verdadeiro apenas quando o mundo real o reconhece. Por que 1 milhão de pessoas acessam uma besteira no YouTube, tipo “Luísa está no Canadá”? Resposta: porque 1 milhão de pessoas acessaram a besteira no YouTube, tipo “Luísa está no Canadá”. O troço faz sucesso porque faz sucesso, sem mérito algum. Vira realidade quando vai para a TV, para o jornal, para a rua. Se fica restrito à internet, evapora.

Porém... algo que só deveria existir na internet pode transformar-se em realidade distorcida. O tal filmeco que ofende o Islã não passa disso: de um filmeco malfeito e mal-intencionado, feito por um picareta, com 14 minutos de duração, algo de péssimo gosto que deveria se esfarelar no YouTube sem que ninguém lhe desse importância.

Mas, por razões diversas, os radicais lhe deram importância, e tem gente matando e morrendo por causa disso. Matando e morrendo, graças às facilidades da internet. O mundo mudou, como havia vaticinado o Wagner, e ainda não aprendemos a lidar com essa mudança. Dá trabalho aprender. E é preciso aprender. Sempre.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012


Contardo Calligaris

Protestos muçulmanos

A facilidade com o qual me sinto ofendido revela que eu concordo, em parte, com a ofensa que recebi
O VÍDEO "A Inocência dos Muçulmanos", apesar de sua mediocridade, fez sucesso. Ninguém aguenta ver aquilo até o fim, mas o vídeo instigou a curiosidade dos internautas quando se soube que ele era a causa dos violentos protestos que se alastraram pelos países muçulmanos, nas últimas duas semanas.

Esquecendo os terroristas que se aproveitaram desses protestos para semear a morte, a visão dos desfiles e dos quebra-quebras foi instrutiva e desalentadora. Instrutiva por nos explicar, mais uma vez, a diferença cultural que separa o Ocidente do islã, e desalentadora porque a esperança de um entendimento recíproco parece pequena.

a) Os cristãos terão dificuldade em sentir empatia com os muçulmanos indignados pelo vídeo, pelas caricaturas dinamarquesas de seis anos atrás etc. Afinal, aqui, Jesus é uma marca de calças jeans e uma personagem de "South Park". No YouTube, encontrei um grupo francês, "Les Vampires", que, como capa de seu disco sobre a homossexualidade de Jesus, propõe o Cristo com uma mão pregada na cruz, enquanto, com a outra, ele se masturba.

Os cristãos se deleitaram com "O Código da Vinci", um best-seller, que explica que Jesus teve filhos com Maria Madalena e a igreja nos escondeu tudo isso até hoje. Qual empatia possível com os que condenaram à morte Salman Rushdie por ter escrito "Os Versos Satânicos", um grande livro, mais citado que lido, em que há sequências oníricas das quais eu nunca entendi por que seriam ofensivas para o islã? Nota: acaba de sair a autobiografia da clandestinidade de Rushdie, "Joseph Anton, Memórias" (Companhia das Letras).

b) Imaginemos, por um instante, que eu não me aguente e queira manifestar minha indignação com "Les Vampires". Uma das últimas coisas que eu faria seria atacar a embaixada da França.

Entendo que os protestos atuais passem a ser contra países cuja política seria mais favorável a Israel do que à Palestina. Mas o fato é que, neles, as massas muçulmanas reagem como se considerassem que um pensamento é a expressão e a responsabilidade do grupo ao qual seu autor pertence. No mínimo, o grupo (a nação) seria culpado porque não sabe disciplinar seus membros.

Ora, prefiro, de longe, aturar "Les Vampires" a exigir que os Estados se tornem guardiões do que pensam seus cidadãos.

Já houve épocas (não tão remotas) em que queimávamos e torturávamos pessoas que pensavam fora dos trilhos da igreja. Mesmo naquelas épocas, ninguém imaginava que os produtos das consciências individuais fossem responsabilidade do grupo ou da nação.

c) O comentário mais interessante que li nestes dias foi a citação, feita por Clóvis Rossi, de Yaron Friedman, no jornal israelense "Yediot Aharonot": "Na consciência árabe e muçulmana, Maomé e seus primeiros califas [chefes político-religiosos] do século 7º simbolizam a idade de ouro do islã e a gênese de um império árabe-muçulmano que chega ao século 12 na vanguarda do desenvolvimento cultural mundial".

"Toda ofensa feita ao profeta é cutucar a lembrança do estatuto de inferioridade no qual se encontra, desde o século 19, o mundo árabe-muçulmano em relação ao Ocidente."

É quase uma regra: qualquer suscetibilidade extrema é o sinal de uma fragilidade interna. Em outras palavras, a facilidade com o qual eu me sinto ofendido revela que eu mesmo devo concordar, ao menos em parte, com a ofensa que recebi.

Ou seja, a suscetibilidade muçulmana manifesta que deve existir, na alma muçulmana, um conflito entre o tradicionalismo religioso e uma aspiração à liberdade em suas manifestações modernas ocidentais.

d) Alguém perguntará: se estamos dispostos a aturar qualquer expressão individual, será que, para nós, nada é sagrado? Será que nenhuma opinião nos ofende a ponto de nos dar vontade, por exemplo, de manifestar?

Resposta. O que é sagrado para mim não é tal ou tal outra opinião -ainda menos a minha. O que é sagrado é o próprio direito de expressar uma opinião e de viver segundo ela manda.

Se uma mulher no Irã queima uma bandeira dos EUA ou da França, acho que é seu direito. Mas, se ela for apedrejada por ser adúltera, irei para a rua pedindo que a gente intervenha com tudo o que temos. Por ser ocidental e moderno, durmo bem com os insultos de quem pensa diferente de mim. Só não durmo bem com o grito dos indivíduos impedidos de se expressar e de viver segundo a liberdade de sua consciência.

ccalligari@uol.com.br

Kenneth Maxwell

Novo tremor de Lisboa

Por oito horas na sexta-feira, o Conselho de Estado português debateu as propostas de austeridade do governo, com a presença do presidente Aníbal Cavaco Silva.

Uma semana antes, centenas de milhares de pessoas saíram às ruas para expressar oposição às medidas do governo, que ameaça elevar a contribuição previdenciária dos trabalhadores de 11% para 18% dos salários, reduzindo a contribuição das empresas de 24% para 18%.

O Conselho de Estado se viu sitiado pelos manifestantes em Lisboa, e o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho prometeu uma renegociação com os sindicatos e os empregadores.

Diferentes de espanhóis ou gregos, os portugueses demoraram a reagir às consequências econômicas do acordo de resgate fechado no ano passado com a União Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu.

Mas o desemprego atingiu 15,7% no país em julho. A economia portuguesa se contraiu em mais de 3%. Ficou evidente que a população foi submetida a pressão forte demais. O amplo consenso político que existia quanto à política econômica se desfez, causando severo desgaste na coalizão de centro-direita.

Os portugueses ainda precisam reduzir seu Orçamento em bilhões de euros. O governo propõe novos cortes nos subsídios, e os sindicatos sugerem impostos mais altos para as empresas e sobre os dividendos dos grandes acionistas.

É tudo bem diferente da situação econômica de Angola, uma antiga colônia portuguesa rica em petróleo, ou, aliás, do Brasil. Angolanos ricos estão adquirindo imó-veis de luxo em Lisboa, e a Embraer fechou um contrato para a produção de componentes para seus novos jatos executivos Legacy 450 e 500 em Portugal.

A economia angolana cresceu a uma média de 15% ao ano entre 2002 e 2008, e o investimento brasileiro em Angola subiu em 20 vezes no período. Mais de 100 mil portugueses trabalham em Angola, hoje. Muitos se transferiram para o Brasil. Brasileiros estão adquirindo porções lucrativas dos ativos portugueses privatizados.

Seria demais esperar que os novos ricos brasileiros e angolanos fossem populares em Portugal. Para piorar as coisas, um terremoto de magnitude 3,6 na escala Richter atingiu Ourique, no sul da província de Alentejo, nesta semana.

Ourique é o local em que Afonso Henriques derrotou os mouros almorávidas comandados por Ali ibn Yusuf, em 1139, e foi proclamado primeiro rei de Portugal. A vitória foi atribuída a são Tiago. Tudo o que falta acontecer agora é um novo terremoto em Lisboa.

KENNETH MAXWELL escreve às quintas-feiras nesta

Pasquale Cipro Neto

'O bom filho a casa torna'

A palavra grega "crase" significa "ação de misturar". Ocorre "crase" quando duas vogais iguais se fundem
NO INÍCIO da última coluna, citei duas frases em que a ausência do acento indicador de crase causa algum estranhamento. Uma delas está no título desta coluna. Não foram poucos os leitores que me pediram que não deixasse de tratar do assunto nesta semana. Para apimentar a questão, apresento outra construção. Lá vai: "O bom filho torna à casa dos pais" (agora com acento grave no "a").

Parece conveniente começar pela palavra "crase" em si, que nomeia o fenômeno da fusão de duas vogais iguais. De acordo com o "Houaiss", a palavra grega "crase" significa "ação de misturar". No caso da língua, ocorre "crase" quando duas vogais iguais se fundem. Isso pode ocorrer, por exemplo, na evolução de uma palavra latina para o português.

Na atual palavra portuguesa "cor", houve crase, já que esse vocábulo resultou da evolução de "colore" (do latim) para "coor", que depois passou a "cor". No percurso de "coor" para "cor" houve crase, já que o grupo "oo" passou a "o".

No português moderno, a crase se resume à fusão da preposição "a" com um segundo "a", que quase sempre é artigo, mas pode ser pronome demonstrativo ou ainda a letra "a" inicial do artigo "as" ou dos demonstrativos "aquele/s", "aquela/s" e "aquilo". Em "Por favor, diga àquele rapaz que...", ocorre a fusão da preposição "a", regida por "dizer" ("dizer a alguém"), com o "a" inicial de "aquele".

Indica-se a ocorrência da crase com o acento grave (acento indicador de crase). Por um processo muito comum na língua (a metonímia), "crase" acabou tornando-se também o nome do acento com o qual se indica a ocorrência do próprio fenômeno da crase.

Por que não há acento grave no "a" de "O bom filho a casa torna"? Nessa frase "tornar" é sinônimo de "voltar", "regressar", certo? Nesse caso, os três verbos podem reger a preposição "a" (voltar/regressar/tornar a algum lugar). Muito bem. Já achamos um "a". Para que se coloque o acento grave, será necessário encontrar o segundo "a", que se fundirá com o primeiro, certo? Esse segundo "a" existe?

Pense nestes exemplos: "Não dormiu em casa"; "É bom voltar para casa"; "Não venho de casa". O que há em comum nos três casos? O valor da palavra "casa", que remete à ideia da própria habitação. Há outra coisa em comum: o fato de não haver artigo antes da palavra "casa" ("em casa", "para casa", "de casa", respectivamente).

Já chegou lá, caro leitor? A que casa o bom filho torna, volta, regressa? À própria, não? Se em vez de "a" usássemos "para", o que teríamos: "para casa" ou "para a casa"? Teríamos "para": "O bom filho torna/volta/regressa para casa". Sim, sim, já sei. Você deve estar pensando na palavra masculina "lar", que, no caso, exigiria "ao" ("O bom filho torna/volta/regressa ao lar"). Mas quem foi que disse que o fato de duas palavras serem sinônimas garante comportamento morfossintático igual?

Vamos voltar a dois dos exemplos vistos. Compare o que ocorre antes de "casa" com o que ocorre antes de "lar": "Não dormi em casa/no lar"; "É bom voltar para casa/para o lar". Percebeu? Que fique claro: quando a palavra "casa" indica a própria habitação, é inútil usar o velho macete da substituição do feminino por um masculino. E por quê? Porque, como vimos e revimos, "casa" é um caso à parte.

É bom deixar bem claro que esse "caso à parte" se limita aos casos em que a palavra "casa" não é modificada por nenhum adjetivo, pronome etc. Veja: "Ela não dormiu em casa"/"Ela não dormiu na casa da irmã". Já chegou lá? Já entendeu por que não há acento grave em "O bom filho a casa torna", mas há em "O bom filho torna à casa dos pais"? É isso.

inculta@uol.com.br