quinta-feira, 5 de março de 2015


05 de março de 2015 | N° 18092
DAVID COIMBRA

Salvando o Brasil ao amanhecer

Meu amigo Fernando alugou um apartamento na Benjamin Constant, nos anos 80. O apartamento ficava no térreo, a janela dava para o asfalto da avenida. Era barulhento, velho e um pouco sujo, devido à fumaça dos carros, que, de alguma forma solerte, se infiltrava pelas paredes e deixava tudo encardido no lado de dentro.

Era um apartamento sombrio, sem dúvida, mas nós o adorávamos. Adotamos o apartamento do Fernando como sede social, ele deu uma cópia da chave para cada um dos amigos e era para lá que levávamos eventuais conquistas amorosas e era lá que fazíamos nossas festas.

Não tínhamos muita verba nos anos 80, então o cardápio dos convescotes se restringia aos seguintes itens:

1. Pão.

2. Linguiça.

E cerveja.

Muita cerveja.

O Fernando trabalhava numa oficina de consertos de eletrônicos, nós o chamávamos de eletricista e ele, por algum motivo, não gostava. Mas era o que ele era, não era?

Seja. O fato é que o Fernando pegava um aparelho “três em um” da oficina e cada um de nós levava uns quatro ou cinco discos e a festa estava pronta.

Não sei como as pessoas ficavam sabendo das nossas festas, acho que era por causa do bar que frequentávamos, o Edelweiss, vizinho do Teatro Presidente. Toda sexta nós íamos ao Edelweiss, comer a pizza deliciosa que o Tio Beto assava, cantar Viola Enluarada e beber cerveja geladíssima. Nunca me esquecerei de uma sexta em que cheguei à mesa e, antes mesmo de sentar, o Tio Beto pôs na minha frente uma cerveja branquinha de tão gelada, anunciando:

– Esta é a melhor maneira de dizer boa noite.

Uma lágrima solitária e agradecida escorreu-me do olho direito e caiu bem na ponta de uma batatinha frita que o Sérgio Anão havia pinçado do prato.

Ocorre que nós conhecíamos muitos desconhecidos no bar do Tio Beto, e eles acabavam aparecendo nas festas do apartamento do Fernando. Em alguma curva da madrugada, os desconhecidos que conhecíamos do bar se tornavam íntimos, e casais se atavam e se desatavam e muitos dançavam e cantavam e outros tantos dormitavam pelos cantos.

Contei que o Fernando tinha um olho de vidro? Tinha. Perdeu o olho bom num acidente e colocou aquele de vidro. A certa altura da noite, ele tirava o olho para se exibir. Uma vez, duas irmãs gêmeas viram aquilo e saíram correndo e gritando por todo o apartamento, e ele atrás, com o olho na mão.

Ao amanhecer, entre cacos de garrafa de cerveja e pedaços mordidos de linguiça, com gente desacordada no quarto, no banheiro, debaixo da pia da cozinha, dentro do tanque da área de serviço, com o disco do Chico rodando pela vigésima vez no três em um, com o sol surgindo atrás do Taj Mahal, aquela boate cara onde não podíamos ir, ao amanhecer nós estávamos sempre prestes a salvar o Brasil.


O Brasil estava mudando, a democracia estava voltando, logo nós poderíamos votar para presidente e tudo seria resolvido. Ou quase tudo. Era o que pensávamos. Estávamos nos anos 80.

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