quarta-feira, 4 de março de 2015


04 de março de 2015 | N° 18091
PEDRO GONZAGA

14329

Este é o dia 14329 desde minha chegada. Era e será, pois escrevi esta crônica no 14327, mas estas linhas você as lerá quando o 14329 já estiver deixando, senão deixado de ser há dezenas ou centenas de números, para saber que foi no dia 14318 que esta ideia me ocorreu, depois de ter assistido, no 14272, ao filme sobre a vida do cantor Nick Cave, 20.000 Dias na Terra.

De modo que de início você já sabe que a numeração não é uma ideia original. A originalidade é sobrevalorizada em nosso tempo, talvez para esconder a época de pálidas novidades culturais que nos coube.

O filme começa com um contador que faz avançar a vida do líder dos Bad Seeds, do nascimento até o dia 20000, marcado por seu despertar e sua rotina. Minha modesta contribuição consiste em adotar esse sistema de medida para fins práticos e específicos na catalogação de nossas próprias experiências.

Somos o que conseguimos salvar dos escombros dos dias. Nunca encontraremos o vaso, apenas os cacos que, como arqueólogos, teremos de espanar e salvar da ação do tempo. O calendário tradicional se repete ano após ano, faz tudo parecer mais cíclico e curto em sua precisão frouxa e impessoal.

Eu podia falar de um 4 de março de 2015. Mas 14329 revela a acumulação, as pequenas vitórias, as tantas derrotas, mas, acima de tudo, uma resistência de cinco dígitos que recebe nosso nome, prova da diferença entre um calendário coletivo, à venda em papelarias, e esse calendário íntimo, que registra uma singularidade antes que ela se esfume.

Assim, lamento não ter tido antes a segurança dos ábacos para dizer que é provável que no dia 5624 tenha começado a aprender saxofone, o que me levaria a impressionar aquela garota da faculdade por volta do 6717, até que tocar se tornasse uma profissão, aqui sim, no 7115. Ter uma nova e triste e milimétrica precisão para a madrugada de maio em que meu primo se foi, ou aquele domingo em que o melhor amigo pediu as contas da vida.


Mas para salvar sobretudo as alegrias. Uma conversa com minha mãe secundada por uma cerveja uruguaia (14320), o súbito frio numa manhã de fevereiro em Porto Alegre (14308), o milagre de alguém vinda ao mundo milhares de dias depois de mim e que devolve a verdura ao solo mais seco.

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