quinta-feira, 26 de abril de 2012



26 de abril de 2012 | N° 17051

L. F. VERISSIMO

Como imaginar uma orgia

    A minicâmera e o grampo telefônico ainda podem fazer mais pela moral na política do que toda a fiscalização e todos os mandamentos cristãos juntos. Supõe-se que, depois dos escândalos recentemente grampeados, as pessoas fiquem mais cautelosas, ou mais reticentes.

    Corruptos e corruptores continuarão a existir, mas não agirão nem falarão mais tão livremente, pelo menos não antes de procurar a câmera e o microfone escondidos. O que deve, no mínimo, dificultar os negócios.

    Os avanços da técnica revolucionaram o registro histórico. Imagine se quando o Kennedy foi assassinado já existissem as gravadoras e os celulares que hoje substituem as câmeras fotográficas até no aniversário do cachorro.

Em vez daquele precário filme em 8mm do atentado, estudado e reestudado quadro a quadro na busca de vestígios de uma conspiração, haveria teipes e fotos de todos os ângulos e com todas as respostas, como a cara, o nome e o CIC dos possíveis conspiradores.

    Mas a técnica, ao mesmo tempo que desestimula a falcatrua, comprova a denúncia, desmancha o mistério e enriquece a notícia, pode empobrecer nossa percepção dos fatos.

    As grandes batalhas e os grandes eventos da era pré-fotográfica foram registrados em quadros épicos em que o artista ordenava a cena em função do efeito, não do fato, ou não exatamente do fato.

    A I Guerra Mundial não foi mais terrível do que muitas guerras anteriores, só foi a primeira guerra filmada, a primeira com a imagem tremida e sem cor, e por isso parece tão mais feia do que as guerras heroicamente pintadas.

    A guerra do Vietnã foi a primeira transmitida pela TV, a primeira em que o sangue respingou no tapete da sala. Por isso deu nojo. Os americanos aprenderam a lição e transformaram sua invasão do Iraque num videogame.

    Até surgir a possibilidade de ser tecnicamente denunciado, o político corrupto podia contar com a condescendência do público. Mesmo quando não havia dúvida quanto a sua corrupção, havia sempre a suspeita de que não era bem assim.

Sua culpa – até se ouvir sua voz gravada combinando a divisão dos milhões, ou ver sua imagem forrando os sapatos com dinheiro – era sempre uma conjetura. Imaginávamos o que acontecia nos bastidores do poder corrupto mas era um pouco como imaginar uma orgia romana, ou visualizar uma orgia romana através da imaginação de um artista.

    Agora não. Com a banalização do grampo telefônico e da minicâmera escondida, temos o que faltava no quadro. Temos todos os sórdidos detalhes e a orgia às claras. Temos o que enoja.

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