30
de abril de 2012 | N° 17055
L.
F. VERISSIMO
Redimidos
Quando
o grampo telefônico e a minicâmera escondida ainda não eram instrumentos de
denúncia e moralização, o político corrupto podia contar com uma certa
tolerância tácita dos seus pares e do público. Mesmo quando não havia dúvidas
quanto a sua corrupção, havia a disposição de perdoá-lo, até de folclorizá-lo –
e o político que roubava mas fazia tinha o privilégio do artista, de ser um
canalha em particular se sua obra o redimisse.
Uma
única gravura do Picasso absolve uma vida de mau caráter. A obra do Marquês de
Sade é estudada com a mesma isenção moral dedicada à obra de Santo Agostinho –
que nem sempre foi santo – e ninguém quer saber se o escritor engana o fisco ou
bate na mãe se seus livros são bons. Ou querer saber, queremos, mas só pelo
valor de fuxico.
A
absolvição custa um pouco mais quando o pecado do artista é o da ideologia
errada. Pois se se admitia no político a perversão privada do artista, a única
inconveniência intolerável no artista era a incorreção política. Assim um
Louis-Ferdinand Céline e um Wilson Simonal tiveram que esperar a remissão que o
tempo acabou dando a Kipling, Claudel, Nelson Rodrigues, Jean Genet etc. Mas a
receberam.
O
político que declaradamente roubava mas se redimia fazendo tinha um pouco desta
imunidade de artista. Sua obra justificava seus pecados, quando não era uma
decorrência deles. Todo o sistema de conveniências e deixa-pra-laísmo que
domina o Congresso brasileiro e que está sendo testado agora presume a mesma
desconexão entre moral privada e moral aparente. A cultura do clientelismo,
onde o suposto proveito político substitui a ética, está baseada nela.
O
que causou a atual revolta contra a roubalheira e a tolerância com a corrupção
no Brasil, além das modernas técnicas de averiguação, é a constatação crescente
de que aqui não se tem nem a ética, nem o proveito, rouba-se para poucos e não
se faz para a maioria. Em cleptocracias mais avançadas, a obra dos artistas do
desenvolvimento, todos bandidos, redimiu-os.
Empresários
corruptores e políticos corruptos fizeram dos Estados Unidos, por exemplo, o
que eles são hoje. O capitalismo selvagem americano domou a si mesmo depois de
construir um país, ou controlou-se razoavelmente, mas nos seus tempos
desinibidos escandalizaria até o Cachoeira. Aqui tem-se o crime mas ainda não
se tem o país.
Palavras
avulsas
O
“rude e doloroso” idioma de Bilac é falado por mais gente do que fala francês,
mas temos razões para nos queixar da sua relativa obscuridade. Ao contrário da
Espanha, que perdeu seu império americano mas deixou um imenso mercado para o
García Márquez e o Vargas Llosa, Portugal não foi muito pródigo com a sua
língua.
Seus
navegadores, catequizadores e comerciantes apenas largaram palavras avulsas
pelos caminhos da sua exploração do mundo, como pepitas raras. Até hoje na
Costa Ocidental da África usam a palavra “dash” para gorjeta. Vem do português
“deixar”, como em “Vou deixar uns trocados para você, ó mameluco!”
No
Japão, o prato de camarão com legumes fritos chamado “tempura” tem este nome
por causa dos portugueses que só comiam peixe durante os “Quattuor Tempora”, ou
Quatro Tempos, de cinzas e contrição, do ano litúrgico. O “mandarim” chinês vem
de “mandar” mesmo, combinada com o sânscrito “mantrin”, ou conselheiro.
Algumas
palavras portuguesas andaram pelo mundo e voltaram com seu sentido mudado.
“Casta”, substantivo, camada social, vem do português “casta” adjetivo.
“Fetishe” começou a vida como feitiço. E o “joss” do chinês pidgin,
significando ídolo, é uma corruptela do “Deus” chiado dos portugueses.
Enfim,
não é muito, mas é nosso.
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