sábado, 14 de abril de 2012


12/04/2012 | 14:26 - NATÁLIA SPINACÉ

“Vi o monitor cardíaco parar e minha filha ir embora”

A servidora pública Giovana Gatti escreveu um comentário na entrevista com Flávio Dino, publicada na edição 723 de ÉPOCA. Nele, ela relatou brevemente a situação por que passou, parecida com a do ex-deputado, que viu o filho morrer de asma dentro de um hospital.

Ao ler o comentário feito por Giovana na matéria, fiquei curiosa e a convidei para contar sua história com mais detalhes. Abaixo está o email que ela me mandou contando como perdeu a filha de três meses vítima de uma septicemia, após esperar mais de 12 horas por uma transferência de hospital

“Música sempre traz alegria. Uma inverdade. Algumas nos remetem a um passado que gostaríamos de esquecer, ou melhor, que nunca deveria ter existido.

Foi ouvindo a música “Ave Maria”, tocada às 18:00 no rádio da UTI, no dia 31 de agosto de 1988, que me despedi de minha filha Maria Laura, de apenas 3 meses. Eu jamais esperaria passar por algo assim aos meus vinte e um anos. O ombro amigo do meu marido foi o meu conforto. Sofremos juntos.

Naquele momento ímpar, vendo o monitor cardíaco diminuir os batimentos e minha filha ir embora, eu recordei a sequência de acontecimentos dos últimos dias: as várias consultas médicas, a minha insistência em dizer que o choro dela estava diferente, que ela não estava dormindo bem… E todos os indícios não investigados e todas as suposições rechaçadas.

Maria Laura começou a passar mal no dia anterior. Fiquei desesperada e a levei para o hospital da minha cidade, João Monlevarde, no interior de Minas Gerais. Chegamos lá às 10h da manhã, e a enfermeira do pronto socorro resolveu batizar a minha filha ali mesmo.

O hospital demorou mais de 12 horas para conseguir uma transferência para uma unidade de Belo Horizonte, com mais recursos para atendê-la. Até hoje não sei o porquê de tanta demora. É incrível como a gente não tem acesso ou explicações sobre o que acontece dentro de um hospital. Só sei que se esse tempo de espera fosse menor, Maria Laura poderia estar comigo nesse momento.

A minha filha chegou a Belo Horizonte com vida. Eram mais de 2 horas da manhã do dia 31 de agosto de 1988, quando ela deu entrada no hospital particular. Nós não tínhamos plano de saúde nem dinheiro, mas tínhamos um fusquinha e uma pequena sala comercial para vender. Deixamos na portaria um cheque caução. Na hora do desespero, vende-se até a roupa do corpo.

Quando o dia amanheceu e o chefe da equipe pediátrica nos chamou para uma conversa, o meu coração de mãe já sabia o desfecho daquele dia. Ele nos mostrou outra criança na UTI que tinha entrado no hospital nas mesmas condições, mas havia se recuperado e estava a caminho do apartamento. Ela também era do interior, mas deu sorte em estar em Belo Horizonte. No caso de nossa filha, o tempo foi crucial.

Após 16 horas de UTI, retornamos à nossa cidade carregando Maria Laura sem vida. Durante o enterro, na nebulosidade dos meus pensamentos, via o olhar de compaixão dos amigos.

Por alguns dias, me senti anestesiada. Então veio a parte mais dolorosa: enfrentar a realidade. Voltar para casa, só eu e meu marido, desmanchar o quarto da minha filha, guardar cada roupinha, o travesseirinho com a marca de sua cabeça e o casaquinho de tricô ainda não terminado…

Foi muito, muito doloroso. Dentro de cada caixa, eu guardava um pedaço de mim, junto com as cantigas que não cantaria, as datas que não comemoraria, o futuro vazio. Conheci a dor da ausência. É uma dor física, no peito, e na boca do estômago. Uma dor cheia de perguntas sem respostas. Então, eu jurei que nunca mais queria sentir a dor do INSUFICIENTE – aquela sensação de que poderia ter feito algo mais.

Foi nesse período que fiz uma descoberta: dizem que o fígado é o único órgão que tem o poder de regeneração. Os cientistas é que ainda não descobriram o poder de regeneração de um coração de mãe. Além de regenerar, mesmo que leve tempo e fique completamente cheio de cicatrizes, ele ainda consegue se multiplicar. A cada filho, um coração.

Comprovei tal teoria após dois anos: eis que surge mais um coração na companhia de outra filha, Paula. Mas, a insegurança me dominou. E se alguma coisa desse errado novamente? Perdi a conta de quantas noites passei dormindo debruçada no seu berço com medo de ela passar mal e eu não estar por perto para socorrê-la.

Virei uma mãe completamente neurótica. Para mim, qualquer espirro já era motivo de ir ao consultório médico. E, completamente sem culpa, procurava uma segunda opinião médica. A dor do INSUFICIENTE não me dominaria novamente.

Depois de sete anos, ganhei outro coração juntamente com a minha filha Júlia. Quanto ao trauma inicial, pensei que já tinha superado. Ledo engano. Passei a dormir outra vez debruçada no berço.

Minhas filhas são a razão do meu viver. Elas conhecem a minha dor e respeitam. Em cada momento de felicidade vivido – os primeiros passos, primeiro dia de aula, quinze anos, passar no vestibular – eu sentia a presença de um anjo chamado Maria Laura. Neste ano, completarei vinte e cinco anos de casada, que serão festejados numa viagem em família, pois, nós quatro (cinco), temos muito que comemorar!”

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