21
de abril de 2012 | N° 17046
NILSON
SOUZA
Ainda que
tardia
A
verdade verdadeira é que aquele homem barbudo assombrou a minha infância desde
o dia em que vi a sua imagem desenhada num livro escolar, com o olhar fixo no
horizonte e a célebre corda amarrada ao pescoço. Morreu enforcado, dizia a
legenda.
– E
foi esquartejado! – acrescentou a professora, querendo dar um toque ainda mais
dramático à biografia do herói.
Todos
nós, alunos daquele grupo escolar pré-histórico, quisemos saber o que
significava “esquartejado”. Ela explicou que os carrascos teriam amarrado
braços e pernas do finado em quatro cavalos, e que cada um disparou para um
lado, fazendo o corpo em pedaços.
– E
a cabeça foi espetada num pau, para ser exposta em Vila Rica! – acrescentou,
tétrica e triunfante.
Passou
um filme de terror na cabeça da meninada. O relato era tão impressionante, que
aquela aula deve ter sido a única que jamais esquecemos. Eu, pelo menos,
cultivei até quase idade adulta um misto de horror e compaixão pela figura
mítica do mártir mineiro.
Até
que comecei a ler e ouvir outras versões sobre o movimento da Inconfidência,
muitas delas reduzindo a pó aquele que é considerado o nosso maior herói.
Fiquei sabendo que ele era um reles sargento de milícia, alferes, como se dizia
na época.
Não
tinha cultura, nem barba, nem liderou coisa alguma. Quando os poetas, os padres
e os desembargadores pularam fora da canoa furada, sobrou para ele – e os
portugueses resolveram pegar alguém para dar o exemplo.
Diante
de tanta controvérsia, passei a olhar para o enforcado com desconfiança. Até
que um dia ouvi da boca santa (e já um tanto desdentada) de Tancredo Neves um
discurso que reabilitaria o seu conterrâneo por bom tempo no meu imaginário:
–
Tiradentes, aquele herói ensandecido de liberdade...
Voltou
o nosso homem para o seu pedestal, ainda com a corda no pescoço e o olhar
ausente, mas outra vez digno de ocupar as páginas dos livros de história. De
Tiradentes eu só ouvira falar, às vezes bem, às vezes mal, mas Tancredo eu
conhecia e respeitava.
Era
o homem que nos devolveria a democracia. Cheguei mesmo a vê-lo de perto, numa
cobertura jornalística em São Borja, no dia em que nevou em Porto Alegre.
Era
um frio monumental, 24 de agosto de 1984, 30º aniversário da morte de Getúlio
Vargas. Depois de uma cerimônia tumultuada no cemitério da cidade, levaram o
mineirinho para um churrasco de galpão. Ele chupava a carne e colocava os pedaços
murchos na beira do prato. Fiquei impressionado com a sua premonitória
fragilidade.
Poucos
meses depois, foi eleito presidente e, numa trágica coincidência histórica,
partiu num dia 21 de abril, como este, em que celebramos o martírio de seu
conterrâneo ilustre.
A
democracia veio, ainda que tardia.
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