23
de abril de 2012 | N° 17048
L.
F. VERISSIMO
Virando
anedota
A
oposição entre corpo e alma não existia em tempos bíblicos, ou pelo menos na
linguagem bíblica. Mas a versão em latim antigo das Escrituras que Santo
Agostinho lia usava “anima” para traduzir “nefesh”, que em hebraico não quer
dizer alma, mas algo como sopro vital, ser, uma forma exaltada do “eu”. E foi
nesse engano que tudo começou.
A
alma e o corpo se separaram e nunca mais se encontraram. E nunca mais se pode
ler o Velho Testamento a não ser como Agostinho o lia, não como um relato da
aventura do corpo humano no mundo como Deus o fez, cheio de som, fúria, sangue
e sacanagem, mas como uma alegoria espiritual, em que até os cantares eróticos
de Salomão queriam dizer outra coisa: a luta da alma para transcender o corpo,
que para Agostinho significava a sexualidade. Tudo culpa de um mau tradutor.
Freud
tentou, de certa maneira, retransformar “anima” em “nefesh”, mas como muito do
que ele escreveu em alemão também foi mal traduzido em outras línguas, a
confusão só aumentou.
No
fim, a grande danação sob a qual vive a humanidade não é a da História nem a da
carne, é a insanável danação de Babel. Deus disse “que haja muitas línguas, e
que cada língua tenha muitos dialetos”. E depois, para ter certeza que os
homens nunca mais se entenderiam, completou: “E que haja tradutores”.
Um
estudo, mesmo superficial como o meu, da etimologia e das transformações que as
palavras sofrem através do tempo e das más traduções revela coisas fascinantes.
“Escândalo” – uma palavra que nos diz muito respeito – está indiretamente
ligado, na sua origem, aos pés. Sua raiz indo-europeia é “skand”, pular ou
subir, de onde também vem escalada.
Quem
pula ou sobe precisa cuidar onde põe os pés, e o grego “skandalon” significa um
obstáculo ou uma armadilha. “Scandalum” em latim tanto pode significar tentação
quanto armadilha. No francês antigo, “scandal” era um comportamento
antirreligioso que agredia a Igreja todo-poderosa e, da mesma origem, existia a
palavra “sclaudre”, de onde vem o inglês “slander”, ou difamação.
Alguns
escândalos não investigados, como acontece muito no Brasil, acabam virando
anedotas. “Anedota” vem, através do francês “anecdote”, do grego “anekdotos”,
história não publicada, presumivelmente tanto no sentido de inédita quanto no
sentido de versão não oficial, secreta, clandestina, enfim, tipo “em Brasília
não se fala em outra coisa”.
Em
francês, queria dizer pequeno relato ilustrativo à margem de um relato maior.
No seu sentido brasileiro continua sendo uma história marginal, só que
engraçada, ou se esforçando para ser. Sobrevive, na anedota, a tradição
homérica da literatura oral, passada de geração a geração sem necessidade de
escrita. Se for escrita, deixa de ser anedota.
Muitos
contadores anotam o fim da anedota para não esquecê-la, mas se sentiriam
heréticos se a escrevessem toda. E assim correm o risco de esquecerem o resto e
ficarem com uma coleção de últimas frases sem sentido.
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