quarta-feira, 18 de abril de 2012



18 de abril de 2012 | N° 17043
PAULO SANT’ANA


Fungando no cangote

Ao contrário do genial humor macabro do Millôr Fernandes, que disse ser o obituário a sua seção preferida nos jornais, pois nela, não raro, saboreava notícias muito agradáveis, tenho um medo pânico dos necrológios.

Nós, que andamos ao redor de 72 anos de idade, sabemos que a morte, esta carnívora assanhada, está prestes a devorar-nos.

Noutro dia da semana passada, morreu o Cláudio Cabral, um homem que criou um estilo no comentário sobre futebol.

Lá fui eu ao São Miguel e Almas venerar o esquife do Cláudio Cabral.

Tanto possa minha saúde precária me permitir, compareço aos velórios possíveis, na esperança de que, em retribuição, mais gente um dia esteja presente em meu próprio e próximo velório.

Eu vou assim fazendo uma poupança em comparecimento a féretros, investindo no meu próprio, que vaidosamente pretendo pare por completo a minha cidade.

Assim é que, afora nas tragédias por acidentes, a morte costuma pontuar sua atividade levando os mais idosos, pelos quais mostra preferência assustadora.

O meu dia, portanto, está por chegar. Meu consolo é o de que a morte vem me espreitando para me apanhar no meu auge. Porque o meu câncer e consequente e cruenta radioterapia, mais esta tontura incapacitante que extinguiu a função quase que total de meus dois labirintos, não conseguiram juntos atingir o meu cérebro, que, como os leitores percebem nestas linhas, melhorou consideravelmente o seu desempenho, que já era satisfatório antes dessas doenças.

Não atingiram meu cérebro nem meu coração. Este continua pulsando pelos melhores sentimentos.

E lá vou eu, esperneando para fugir da efemeridade e, quem sabe, atingir a eternidade, único prêmio aos que passam pela vida em busca da glória perene.

E lá vou eu, cônscio das minhas tonteiras, mas convicto de que alcancei na vida um pequeno destaque, que no entanto me distinguiu de muita gente.

E convicto também, já que falo em falecidos, de que uma seleção deles foi tão importante para a minha vida quanto o são agora aqueles que ainda permanecem no meu derredor e constituem o meu encanto em viver.

Quando pararem todos os relógios e gritarem em vários pontos da cidade que morri, quero que os pósteros sintam alguma falta de mim ou uma profunda saudade pelo que lhes signifiquei.

Quero que relembrem que minha atação em suas vidas teve alguma importância e que houve tempos em que não podiam viver sem mim, assim como minha vida emperraria se eu não tivesse eles ao meu lado.

Quero que todos os dias em que os que sobreviveram a mim por algum motivo estejam alegres, voltem suas lembranças para meus atos afetivos e minhas ideias destemidas, erguendo um brinde em minha memória.

E, se não puderem erguer um brinde, pelos menos se recordem de mim como uma pessoa que então lhes faz falta.

Desculpem se falo no fim da vida dos outros e minha, é que me parece muito estranha essa sensação da morte fungando no nosso cangote.

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