ANTONIO
PRATA
Ela o chama, ele finge que não
ouve
Parece
sem graça, mas três décadas de treinamento transformam um jogo da velha na
batalha de Waterloo
Ela
o chama, ele finge que não ouve, e a isso se dedicam há mais de 30 anos. Claro,
têm também outras ocupações: ele é advogado, ela é assistente social, há o pôquer
às terças e o almoço na irmã, às quintas, mas não empenham nessas atividades
metade da energia ou do método envolvidos em chamá-lo e não ouvi-la.
Falando
assim parece fácil e sem graça, mas três décadas de treinamento transformam
qualquer jogo da velha na batalha de Waterloo, de modo que é preciso observar a
cena com a atenção de quem lê um poema ou desarma uma bomba (ou lê um poema E
desarma uma bomba) para descobrir todos os meandros ali escondidos.
O
volume no qual ela o chama, por exemplo, deve ser meticulosamente calculado: não
tão baixo que dê a ele a possibilidade de realmente não ouvi-la nem tão alto a
ponto de tornar impossível fingir não havê-la escutado. Pois não ouvir também
requer atenção e esmero. Digamos que eles se encontrem no corredor, frente a
frente, e ela o chame: difícil fazê-la crer que não escutou.
Como
em toda arte, verossimilhança é fundamental. É preciso estar em outro cômodo, é
preciso que passe um carro na rua, é preciso estar deitado sob a pia, vedando
um sifão -afastado, portanto, distraído, portanto, concentrado, portanto-, para
ter legitimado seu silêncio. Aí sim ele pode espraiar toda a sua agressividade,
colocando na mulher a diabólica pergunta: não terá mesmo me ouvido ou apenas
finge, calado?
Passados
alguns segundos, ela o chama outra vez, um pouco -mas só um pouco- mais alto. Nada.
Vem então a terceira chamada. O terceiro vazio. Eis o ápice. É uma casa cheia
de gás, à espera da fagulha, uma bexiga aproximando-se da agulha, o segundo
antes do trovão, e a regra é clara, Galvão: quem gritar, perde.
Será
ela a urrar o nome dele, aliviando o ódio, mas baixando a guarda e dando-lhe a
chance de encaixar um direto -"Eu tava lá no escritório!", "Tá barulho
na rua!", "Eu tô aqui consertando o sifão!" -, ou ele é quem
responderá, esgoelando-se -"Que é, caramba?!", abrindo para ela a
oportunidade de tripudiar, "Tô te chamando há horas!", "Tá completamente
surdo!", "Cê precisa usar aquele aparelhinho do tio Laurindo!"?
Há,
claro, inúmeras variações neste jogo e seria preciso uma edição inteira do
caderno "Equilíbrio" para falar de todas. Às vezes, por exemplo,
quando ela o chama baixo demais, ele responde imediatamente, como que negando,
assim, toda a história das hostilidades e os antigos crimes de guerra. Noutras
ocasiões, estando frente a frente, ela o chama quase gritando - um comentário
sarcástico e nada sutil sobre a vida a dois nos últimos 30 anos.
Vendo
de fora, a tendência é pensar que ela é a vítima e ele o algoz. Que nela está a
carência e nele o poder de supri-la -ou negar-se a-, mas na verdade é mais
complexo.
Não
há condutor ou conduzido nesta dança, é um jogo sem vencedores e sem fim, um
jogo tão secreto quanto barulhento, uma metástase que já não pode ser
extirpada, que aos poucos não está mais só em chamá-lo e não ouvi-la e, quando
menos se espera, é capaz de colocar num "bom dia" a violência de uma
facada.
antonioprata.folha@uol.com.br
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