sábado, 14 de abril de 2012



14 de abril de 2012 | N° 17039
CLÁUDIA LAITANO


A maior metáfora do mundo

Às vezes, um charuto é apenas um charuto. A célebre frase de Freud, o sujeito que inventou toda uma teoria para provar que uma coisa sempre pode significar outra coisa, ironiza o cacoete psicanalítico de perseguir sentidos ocultos em tudo.

Sim, é possível que um charuto, eventualmente, seja apenas um prazer inocente, mas o exercício de construir novos sentidos a partir da análise de um episódio histórico, de uma obra de arte ou mesmo de um gesto individual às vezes nos leva mais longe do que a mera análise objetiva dos fatos.

Quando os jornais da época noticiaram o naufrágio do Titanic, o dramático destino do transatlântico e de seus passageiros talvez ainda pudesse ser encarado apenas como fatalidade. Cem anos e centenas de músicas, livros e filmes depois, é impossível falar do Titanic sem revestir o episódio por camadas e mais camadas de sentidos submersos.

Em uma reportagem publicada esta semana na revista New Yorker, o jornalista Daniel Mendelsohn (não por acaso, um crítico especializado em tragédias gregas) tenta explicar por que o Titanic permanece fascinando as pessoas – apenas este ano, três dúzias de novos livros sobre o assunto estão chegando às prateleiras, além de minisséries, teses e de uma versão em 3D do filme de James Cameron.

A hipótese desenvolvida pelo jornalista é a de que o naufrágio do Titanic tornou-se uma espécie de imagem multiúso, eficiente para ilustrar diferentes ansiedades da modernidade. (Em 1999, o jornal satírico americano The Onion condensou essa ideia em uma manchete muito bem sacada: “Maior metáfora do mundo choca-se com um iceberg”.)

Temas como o embate entre o homem e a tecnologia, conflitos de classe, raça e gênero e principalmente a percepção genérica de que o mundo estava diante do “fim de uma era” encaixam-se à perfeição aos relatos sobre o colosso naval que nunca chegou ao seu destino.

O Titanic tem o timing de um blockbuster (2h40min entre o iceberg e o fundo do mar) e um nome que não seria melhor se tivesse sido criado por um escritor inspirado (os titãs eram criaturas magníficas que ousaram enfrentar os deuses do Olimpo – e perderam). Estão lá os personagens, as subtramas e os diálogos de uma tragédia, que se não tivesse acontecido provavelmente teria sido inventada. Cem anos depois, o iceberg derreteu – e o Titanic virou mito.

Pode-se encarar a votação desta semana no STF como um “charuto”: era aquilo e estamos conversados. Eu prefiro imaginar que, daqui a 20 ou 30 anos, a votação que permitiu o aborto de anencéfalos será lembrada não apenas como um marco histórico, mas como o início do fim de uma era. O fim da confusão entre convicções religiosas privadas e políticas públicas, o fim do silêncio e da hipocrisia.

Quem olhar com atenção vai ver que o iceberg já começou a derreter.

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