21
de outubro de 2013 | N° 17590
LIBERATO
VIEIRA DA CUNHA
Luz do entardecer
Ela
era morena, de um tom bem pronunciado, como a Gabriela de Jorge Amado. Tinha
traços lindos. Se fosse uma estátua daquelas gregas, como as que ornamentam o
Château d’Eau de Cachoeira, diria que era candidata à eternidade.
Mas
não era. De momento, estava inteiramente entregue a um finito, trêmulo
exercício: o de aspirar longamente algum tipo de substância mágica, que se
continha em um trivial saquinho de plástico.
Seu
companheiro, que não aspirava a nada, a não ser coletar latas de cerveja e de
refrigerante, tentava fazê-la seguir adiante. Ela, contudo, inteiramente
inebriada dos eflúvios (deixem esses eflúvios aí) que lhe vinham do mínimo saco
de plástico, resistia. Sua voz era a de mil humanidades aprisionadas no caos,
era a materialização do nada refletido em futuro nenhum, passado ou presente.
Ela
estava ainda assim tão bela e anelante em seu vestido curto, em suas pernas
descobertas que, intuo, desejava fazer amor ali mesmo, bem defronte ao painel
de Vasco Prado, em plena Rua Duque, nas pedras portuguesas da calçada da
excelentíssima Assembleia Legislativa, à luz do dia e ao som do céu profundo.
Mas
seu amigo a puxava, bravo, em direção à Praça da Matriz e lhe dizia frases
curtas e iradas e a chamava de besta e de outros maus nomes que não vou pôr
aqui no jornal e ela lhe resistia como uma potra, tão escrava dele e de si
mesma e de não sei que poção entesourada no saquinho de plástico. E levava a
mão esquerda ao sexo, em oferenda, era como se tivesse descoberto naquele
instante um modo urgente e definitivo de dar-se, que força alguma do universo
ousaria deter.
Então
seu homem não a fez cem vezes mulher, como queria, mas atirou-se a ela e a
pegou pelos cabelos e a jogou contra o granito da parede e a chutou como a um
animal daninho e a ela escapou o saco de plástico e lhe faltou o prumo e
desabou no chão em meio a um pranto entrecortado, feito o de uma criança ébria
do que já não respira.
E
mudo o homem encurvou-se e alcançou-lhe a face linda e desfeita em lágrimas com
novos golpes repetidos, até que se cansou daquilo e voltou às latas, como se
não mais que um incidente banal houvesse interrompido sua coleta, enquanto da
mulher escapava um choro fundo, que lhe vinha em sobressaltos.
Foi
nessa hora que chegaram os circunstantes e um ameaçou o homem com a polícia e
outro ergueu a mulher bela que chorava e lançou um olhar às suas coxas
desnudas. Mas a mulher já se grudara a seu homem e se afastaram ambos em
direção à luz do entardecer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário