segunda-feira, 7 de outubro de 2013


07 de outubro de 2013 | N° 17576
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

Como dizia o poeta

Como era no tempo da ditadura? Bem, a maioria das pessoas ia tocando a vida, como se nada de terrível estivesse acontecendo. Namoravam, viajavam, iam ao cinema. Não eram precisamente muitas as que se rebelavam de arma na mão, sujeitas a ser presas e torturadas, em certos casos a morrer, desaparecer. Havia ainda outras que perdiam seus mandatos, tinham seus direitos cassados, eram exiladas. Existia muita miséria e muita grandeza.

Há um fato da vida que é triste: nem todos nascem com a vocação de heróis. E tem um negócio que é pior: há gente de todo tipo, até gente que delata, entrega, denuncia o real e o irreal. E há, em épocas assim, um sentimento coletivo, difuso, paralisante, de temor. Vou te contar uma historinha banal, uma de que me lembrei agora, dentre tantas que poderia te narrar.

Uma vez, isso bem no início da Redentora, eu tinha combinado me encontrar com um amigo, Y., em um restaurante. Y. apareceu com seu colega Z. e a noite transcorreu agradável. Nós éramos jovens, a comida, soberba, havia uma tola esperança em nossos corações, a de que o pesadelo em que havia imergido o país logo ia findar. Discutimos política em voz alta, quem sabe alta demais, descuidadamente. A horas tantas, Y. e eu tomamos cada um nossos rumos e nem percebemos que Z. errou o seu.

No dia seguinte, toquei para a Rodoviária, pois era sábado e precisava ir a Cachoeira. Comprei a Folha da Tarde e a manchete, tomando quase toda a primeira página, dizia: “Bomba na Casa do Comandante do III Exército”. O texto dava detalhes: o estudante Z., preso nas vizinhanças da residência daquele bravo militar, declarara, segundo a história oficial, que ali estava para mandá-la aos ares com o prestimoso auxílio de um potente artefato bélico.

O estudante Z. era um ser pacífico, não carregava bomba nenhuma. Era aquele mesmo Z. que tinha jantado comigo e com Y. na véspera. Mas era evidente que tinha pisado sem querer o que então chamavam de área de segurança. Se colocado contra a parede, com o auxílio de métodos que se tornariam uma das mais sinistras glórias tecnológicas do regime, entregaria a nós, ao Papa, a Deus em pessoa, como perigosos elementos subversivos.

Não aconteceu nada disso, acabaram soltando Z., parece óbvio que depois de aterrorizá-lo com ameaças de todo gênero, mas não passei exatamente um bom fim de semana na Princesa do Jacuí.

Por que não te falei os nomes de meus amigos?

Sabes que nem eu sei por quê? Talvez por velhos hábitos.


Talvez por que, como dizia o poeta, não é a morte que me põe medo. É a vida, meu filho.

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