10 de outubro de 2013 |
N° 17579
MÁRIO CORSO
Maníaco por calçada
Poucas coisas me desacomodam
tanto como as pessoas que caminham pelo meio da rua, evitando as calçadas,
quando estas lhes oferecem sem custo um andar mais seguro. Não se sentem à
vontade nelas, provavelmente pensam que invadem algo. Não pegam o conceito do
que seja uma calçada. Concebem apenas o espaço privado e o público, dentro e
fora, sem margens intermediárias.
Esses caminhantes fora de lugar
me deixam inquieto porque as calçadas são minha parte preferida nas cidades.
Andar por elas sem compromisso, traçando meu próprio labirinto, é meu ideal de
passatempo. Ir a esmo por Porto Alegre é como perder-se dentro de casa,
surpreender-se com a extensão de um velho corredor, descobrir um ângulo
inusitado no ambiente ora saturado de certezas. É ocasião para enxergar o que
os olhos cansados já deixaram de ver. Vagueio tanto pelo gosto como por tentar
decifrar um novo lugar. Até aqui muitos me acompanham, não há nada de especial
nesse hábito prosaico. A questão é que nessas andanças faço das calçadas meu
termômetro particular para medir a civilidade de cada local.
Cada um tem sua forma peculiar,
por vezes torta e reducionista como essa minha, de julgar o mundo. A
conservação das calçadas e o respeito ao pedestre me dizem muito. Sou um
maníaco por calçada assumido. Atribuo quixotescamente notas de moral cívica
imaginárias a quem não pediu. Para minha sorte, e integridade física, guardo no
íntimo esse espírito de fiscal voluntário da prefeitura.
É nesse espaço exíguo que o
público e o privado se encontram, é a beira do mar dessas contingências. Um
buraco na rua é problema da prefeitura, um buraco na calçada é problema nosso.
A calçada é, e não é, nossa. Somos os responsáveis, porém não os donos. Calçada
mal conservada, suja, obstruída, privatizada, ou a ausência dela, dá a nota da
cidadania de cada local. Porque nesse caso não se trata de invocar o Estado
faltante, nossa desculpa mais corriqueira, quem falha aqui é o cidadão.
Como sou matutino, me comovo
vendo o esforço de muitos para lavar ou varrer o seu pedaço de mundo
compartilhado. Arrumam com carinho a passarela de todos. Há uma generosidade
nesse gesto que lubrifica a possibilidade de vivermos juntos. A calçada é o que
nos protege do nervosismo da rua, quanto melhor, quanto maior, mais é ferrolho,
mais vamos tranquilos. A frente das casas pode emprestar aos passantes um gesto
de aconchego. É uma espécie de sala de estar pública, onde os desconhecidos, os
passantes fortuitos, receberiam a hospitalidade dos locais.
Um dos dramas contemporâneos é a
perda gradativa dos espaços públicos de convivência. Creio que o caminhante que
evita a calçada encarna meu pesadelo de perder esse espaço que me é tão caro.
Ele seria o grau zero da conquista civilizatória magna (na minha bizarra
filosofia) que é essa estreita faixa de sociabilidade pedestre. O privado e o
público têm nele um encontro seco, um choque abrupto, sem embreagem. É meu medo
de ficarmos reduzidos aos espaços pragmáticos, de perder a gratuidade dos
encontros casuais, o prazer de se sentir seguro e à vontade longe de casa.
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