domingo, 6 de outubro de 2013


06 de outubro de 2013 | N° 17575
O CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA

RAUL, LENNON E O GRANDE BRASILEIRO

Raul Seixas estava em Nova York, fugido da repressão. Foi em 1974 isso. De alguma forma, ele começou a corresponder-se com John Lennon. Trocavam cartas, esse estranho meio que as pessoas tinham de se comunicar no passado remoto. Falavam sobre a sociedade alternativa, tema preferido do Raul. John Lennon vivia sozinho. Havia se separado da Yoko Ono, aquela destruidora de Beatles.

Um dia, Raul Seixas foi convidado a visitar John Lennon. Apresentou-se no apartamento dele junto com outro brasileiro, um dirigente do Cruzeiro. O que esse dirigente do Cruzeiro fazia lá, não consigo imaginar. Sei que John Lennon logo mandou o dirigente do Cruzeiro embora e pôs-se a conversar com o Raul Seixas. Muito mais interessante falar sobre o ouro de tolo e o medo da chuva do que sobre Palhinha, Nelinho e Joãozinho.

Raulzito ficou três dias no apartamento de John Lennon. Calculo que fosse aquele apartamento no Edifício Dakota, onde foi filmado o clássico O Bebê de Rosemary, e na frente do qual Lennon acabou sendo assassinado seis anos depois. Deve ter sido lá.

Raul contou que eles conversaram sobre vários assuntos, mas principalmente sobre os grandes homens, as pessoas que mudaram a Humanidade para melhor, como Jesus Cristo e outros de tal naipe. E foi então que John Lennon perguntou a Raul quem, no Brasil, poderia ser enquadrado nesta categoria.

Quem era o Grande Homem do Brasil, o gênio brasileiro que prestou alguma contribuição imemorial para o planeta Terra? Raul Seixas ficou nervoso. Grande Homem brasileiro? Quem era o Grande Homem brasileiro? Pensou, pensou, enquanto John Lennon aguardava, atrás de seus óculos redondos. Então, sem saber exatamente o que dizer, Raul Seixas proclamou:

– Café Filho!

John Lennon ergueu as sobrancelhas:

– What? Who?

E Raul, com convicção:

– Café Filho. Grande homem. Grande brasileiro.

Imagino que John Lennon morreu lamentando não ter colocado a foto de Café Filho na capa do Sgt. Pepper’s.

Que falta faz um Australopithecus

A Índia teve Ghandi, além de Buda. A África do Sul teve Mandela, além do Australopithecus. E o Brasil?

Café Filho.

Se bem que, veja a Alemanha, berço de gênios da Humanidade, como o tripé de meio-campo da filosofia moderna Kant-Schopenhauer-Nietzsche, mais a insuperável dupla de ataque da música Beethoven e Mozart, que era austríaco, mas era germânico.

Pois então, veja a Alemanha, que ainda gerou um Einstein, um Goethe, um Schiller e até um Freud, igualmente austríaco e igualmente germânico. A Alemanha produziu todos esses semideuses da raça humana, mas também produziu um Hitler, que, como Mozart e Freud, era austríaco, porém germânico.

Valeu a pena? A resposta é não. Às vezes vale a pena ter a alma, senão pequena, mais provinciana, pacificamente provinciana, como a alma do Brasil, esse país de inofensivos Cafés Filhos.

No que somos bons

Beatles foram Mozart e Beethoven, foram gênios da música popular. Pelé e Garrincha também foram Mozart e Beethoven, também foram John Lennon e Paul MacCartney, também foram Beatles, mas foram isso tudo no futebol, e o futebol é só um jogo.

Não, o futebol não conta. O futebol é menor.

Noel, Tom Jobim, Chico e Vinicius decerto que são grande, mas não são Beatles. Não mesmo.

Machado de Assis? Ótimo, sim, mas não ombreia com um Dostoievski, com um Proust.

No que o Brasil é realmente bom é no estilo econômico, curto, rápido, bem brasileiro da crônica. A crônica, exatamente por ser leve, exatamente por ser a obra de um dia, casa bem com o espírito nacional. Aí há três grandes: Rubem Braga, Verissimo e Nelson Rodrigues.

Esses três, sim, Raul poderia citar para Lennon com orgulho. Duvida? Vá à livraria mais próxima, ou à Feira do Livro que se aproxima, e adquira 200 Crônicas Escolhidas, do velho Braga, lançado pela Record. Leia e veja a redenção deste país de Café Filho. 

Nenhum comentário: