20
de outubro de 2013 | N° 17589
O
CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA
MÚSICAS DA VIDA
PARALELAS
Era
um apartamento no décimo andar, no meu quarto havia uma janela francesa
recortando a parede do gesso do teto ao carpete do piso, e por ali entrava a
luz da lua e o ar da noite.
Era
o meu primeiro fim de semana na cidade.
Viera
de Porto Alegre para trabalhar no Diário Catarinense, tinha 22 anos de idade,
um colchonete para dormir, um radinho de pilha e um gravador pequeno, de fazer
entrevista, e nada mais. Minhas roupas ficavam empilhadas no chão do quarto,
encostadas à parede.
Vinte
e dois anos de idade, e a excitação de estar começando a vida, e a emoção de
ter tanto para viver.
Deitado
no colchonete, estiquei o braço e tomei o radinho, que estava no chão. Liguei.
E a música evolou-se pelo quarto: a voz rouca de Belchior, cantando Paralelas.
Como
é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel, o que é
paixão.
Fiquei
ali, ouvindo e olhando para a noite azul-escura, sem pensar em nada, sentindo
apenas a juventude do meu coração, uma juventude que hoje, tanto tempo depois,
inexplicavelmente, talvez ridiculamente, ainda sinto.
VIOLA
ENLUARADA
Todas
as noites nós íamos ao Maza para tentar derrubar o governo. Bem, é verdade que
também íamos lá para beber umas cervejinhas, mas o objetivo, digamos, nobre era
acabar com a ditadura. E acho que contribuímos de alguma forma para a volta da
democracia, é impossível que os generais não tenham sentido os eflúvios
libertários que emanavam da nossa mesa. Eram muitos planos urdidos, muitas
ideias de vida nova, de novo país e tudo mais.
Éramos
alunos da Famecos e vivíamos uma fase mezzo anarquista, mezzo comunista. Eu,
mais anarquista do que comunista. Bom... para falar a verdade, eu era mais
coisa nenhuma. Nunca fui doutrinário e detesto a ideia de pertencer a algo com
regras de comportamento.
De
qualquer forma, era divertida toda aquela rebeldia, sobretudo quando dobrávamos
a última esquina da madrugada e começávamos a cantar Viola Enluarada, do Marcos
Valle.
Viola
Enluarada era uma espécie de hino da sedição com a qual pretendíamos espanar os
militares do poder. Cantávamos de dentes rilhados e, no final apoteótico,
levantávamos nossos copos de cerveja e abríamos a garganta, fazendo o Maza
balançar a cabeça e suspirar detrás do balcão:
“Porta
bandeira, capoeira
Desfilando
vão cantando:
Liberdaaaaaaaadeeeee!
Liberdaaaaaaaaadeeeeee!”
Ah,
estremeçam, generais!
Era
uma música que pregava a luta armada, aquela Viola Enluarada. Claro, nenhum de
nós tinha sequer canivete e não pretendíamos nem xingar o guardinha da esquina,
mas era uma realização clamar ao mundo tacanho e conservador o nosso grito de
revolução de mesa de bar:
–
Liberdade! Liberdade!
VOCÊ
NÃO ENTENDE NADA
A
noite de Porto Alegre já foi forte na Getúlio. Lá havia um bar que às
segundas-feiras servia carreteiro de graça, desde que o cliente pedisse não sei
quantas cervejas.
Pimplus,
o bar.
Nós,
como éramos muito duros, é óbvio que não se passava uma segunda sem que
saltitássemos em alegre bando rumo ao Pimplus. Nós, que digo, era a turma da
faculdade mais a da Sulina, onde eu e o Sérgio Ludtke trabalhávamos, mais o
pessoal do nosso bloco de Carnaval de Cachoeira do Sul, o Alá-lá-ô.
Tenho
a impressão de que o dono do bar não gostava muito de nós, porque ele demorava
muito a servir o nosso carreteiro. As outras mesas todas já tinham sido
atendidas e nós lá, esperando com a nossa fome antiga. Acho que é porque nós
sempre éramos os últimos a sair do bar, os garçons empilhando cadeiras nas
mesas e nós ainda bebendo e cantando. Em compensação, e talvez pelo mesmo
motivo, o cantor nos adorava. Não lembro como ele se chamava. Ele usava um
chapéu coco e bigode.
Ficava
contente com a bagunça que fazíamos e sempre nos atendia quando pedíamos alguma
música. Mas havia algo que ele fazia que era emocionante e que nos levava a
voltar ao bar duas ou três vezes por semana: sempre, eu disse SEMPRE que
entrávamos no Pimplus, ele parava a música que estivesse cantando, fosse qual
fosse a música, fosse qual fosse o trecho em que estivesse, e começava a
cantar:
“Quando
eu chego em casa nada
me
consola
Você
está sempre aflita
Lágrimas
nos olhos de cortar cebola
Você
é tão bonita...”
E
nós, entre sensibilizados e orgulhosos com a homenagem, cantávamos também.
Sentávamos na nossa mesa, pedíamos cerveja e cantávamos.
“Eu
quero ir embora
Eu
quero dar o fora
E
quero que você venha comigo!”
Pena
que o carreteiro demorasse tanto.
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