19
de outubro de 2013 | N° 17588
CLÁUDIA
LAITANO
Vidas editadas
Aprendi
com Carlos Reverbel a gostar de ler biografias e memórias. Mergulhar na vida de
outra pessoa através de um livro é talvez o mais próximo de uma máquina do
tempo que a realidade pode nos oferecer. Se um dia eu já dividi a mesa com
Sartre no Café de Flore ou viajei com Carmen Miranda nas asas da Panair foi
porque um biógrafo teve a gentileza de me levar até ali.
Jornalista,
escritor e biógrafo, Reverbel dizia que a história é um quebra-cabeça que ninguém
nunca completa. Notas biográficas, notícias de jornal, documentos em arquivos,
fotografias antigas, testemunhos – todos esses elementos são peças importantes
na montagem desse quebra-cabeça, mas nenhum conta a história toda sozinho.
Reverbel
sabia disso porque dedicou boa parte de sua vida a pesquisar sobre o escritor
Simões Lopes Neto (1865–1916), e em mais de quatro décadas nunca ficou muito
tempo sem descobrir algum detalhe que abrisse toda uma nova rota de investigação.
Graças
a esse trabalho minucioso e incansável, a obra do autor pelotense passou por um
processo de redescoberta e revalorização. Reverbel não apenas ajudou a
recuperar um escritor importante que andava esquecido como descobriu originais
e, a certa altura, até mesmo ajudou a viúva a receber uma pequena pensão. É difícil
que qualquer pesquisador, hoje, se debruce sobre a obra de Simões Lopes sem ser
obrigado a mencionar o trabalho de seu primeiro biógrafo. As duas biografias
seguirão entrelaçadas para o futuro – o que é uma bonita ideia de camaradagem
eterna de pessoas que nunca se encontraram.
Há exatos
20 anos, autografei na Feira do Livro de Porto Alegre, ao lado de Reverbel, o
livro Arca de Blau, suas memórias autorizadas e encomendadas. O jornalista, na época
com mais de 80 anos, pediu minha ajuda para colocar no papel episódios que ele
gostaria de deixar registrados para futuros pesquisadores como ele.Estão ali
histórias da Editora Globo, do velho Correio do Povo, da Porto Alegre dos anos 30,
da Paris do pós-guerra.
Como
redatora do livro, de vez em quando eu tentava puxar o fio da meada para algum
assunto mais pessoal – esforço que, em geral, não dava em muita coisa. Discreto
e naturalmente elegante, Reverbel detestava falar de si mesmo. Às vezes, fazia
alguma inconfidência mais picante sobre um personagem conhecido que tinha sido
seu amigo, e eram muitos, mas em seguida tratava de avisar, com olhar maroto: “Isso
é pra ti, viu? Não é para entrar no livro”.
Pode
parecer contraditório um biógrafo não querer falar sobre a própria vida, mas
talvez seja apenas humano. Ninguém gosta de ver sua intimidade exposta,
reinterpretada a partir de outra perspectiva, mesmo que supostamente neutra. Biografia
boa é biografia dos outros – ou então póstuma. (Apesar disso, não tenho dúvida
de que Reverbel mandaria às favas o direito à privacidade se o que estivesse em
jogo fosse o direito do país de tratar bem a própria memória.)
O
fato é que todos gostaríamos de deixar ao mundo uma versão caprichada de nós
mesmos, escrita com caligrafia impecável em papel bíblia – e isso talvez seja
mais verdade ainda numa época em que as pessoas parecem tratar a própria
intimidade como uma marca que precisa ser administrada.
O
que Carlos Reverbel nunca imaginaria é que, anos depois da sua morte,
inventariam uma espécie de biblioteca universal das biografias passadas a limpo.
Um lugar onde milhões de pessoas podem editar suas vidas para que elas pareçam
mais divertidas, mais completas, mais sensatas. Com imagens de viagens
maravilhosas, festas superdivertidas e famílias e amores mais que perfeitos.
Nossos
perfis autorizados oferecem ainda a possibilidade de sermos curtidos e
compartilhados – como se fôssemos todos, enfim, merecedores da oportunidade de
biografarmos a nós mesmos da maneira que mais nos agrada.
Antes
que algum aventureiro o faça.
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