19
de outubro de 2013 | N° 17588
PALAVRA
DE MÉDICO | J.J. CAMARGO
O MÉDICO QUE
SOBREVIVERÁ
Conviver com médicos em formação, respirar a ansiedade
deles e ter vivido o suficiente numa fase turbulenta da medicina, para ignorar
a preocupação de ser popular, têm algumas vantagens. Entre elas a de admitir
que, em algumas coisas, erramos feio, como, por exemplo, não precisávamos ficar
tão soberbos só porque sabemos mais do que nossos antecessores.
Se
tivéssemos prestado mais atenção, teríamos entendido que aquela história de
“melhoro só de olhar para o meu doutor” não era uma metáfora vazia. Havia nela
um corrimão da segurança e a mão espalmada da parceria. Não devíamos ter
transferido toda a culpa para um sistema podre que parece ter sido construído
para frustrar os nossos sonhos.
Quando
impulsivamente desviamos nossa irritação para aquele infeliz que nos impuseram
tratar por um salário ridículo, cometemos dois equívocos terríveis: primeiro,
magoamos quem não tinha nenhuma culpa de ter adoecido pobre num país em que
apenas os slogans são perfeitos, e segundo, sabendo disso como sempre soubemos,
minamos a nossa já combalida autoestima, o que nos deixou ainda mais
intolerantes.
Se,
naqueles ambulatórios superlotados e ensandecidos, tivéssemos gasto 10 segundos
para acompanhar o paciente até a porta, e de lá trazido o seguinte pela mão,
teríamos conquistado, a cada vez, duas novas pessoas carentes de afeto, e eles
e nós terminaríamos aqueles encontros mais confortados e felizes. E isso
dissiparia a indisfarçável onda de tristeza que ontem empanou a comemoração do
nosso dia.
Claro
que ver uma profissão que devia ser marcada pela doçura e pela generosidade rebaixada
a uma condição de mero instrumento de sobrevivência não reforçou o ego de
ninguém, mas a rebelião, ainda que justificável, claramente escolheu caminhos e
instrumentos errados.
Não
podíamos ter ignorado que ser médico é ter acesso a este mundo misterioso, onde
a angústia, a dor e a fantasia da morte despojam o paciente de todas as
posturas e encenações ensaiadas, e exteriorizam-no como um ser vulnerável e
absolutamente autêntico.
Foi
pouco inteligente não percebermos que este relacionamento agudo e dramático,
que permite que o médico aprenda, como nenhum outro, a identificar pessoas e,
depois de algum tempo, a classificá-las com segurança, é um grande exercício de
humanidade, que coloca o médico acima das pessoas comuns, mas exige, em
contrapartida, uma grande sensibilidade e uma inesgotável disponibilidade de
afeto. E, neste quesito, muitas vezes, relaxamos.
O
resgate da dignidade dessa maravilhosa profissão passa pela determinação de nos
opormos aos atravessadores abjetos que pretendem impor estratégias que tornem o
exercício da medicina um negócio mais rentável. Na discussão sobre custos,
recomendo aos mais jovens que nunca titubeiem quando a decisão envolver o que é
melhor para o paciente, porque isto é, na essência, o que nos protege, realiza
e justifica.
As
manobras orquestradas contra a classe médica como reles estratégia eleitoreira
terão sempre a efemeridade das causas vazias, e nunca ofuscarão a grandeza do
nosso trunfo maior: a alegria de aliviar sofrimento. E desta nunca nos
despojarão. Gosto de acreditar que descrevi o caminho do médico que, depois de
ultrapassada a pantomima dos estrangeiros virtuosos, prevalecerá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário