"Sou devoto dos cachorros
mancos"
"Os
homens com vergonha de amar deveriam adotar um cachorro manco e contemplar o
esforço da ausência. Segurar a patinha inexistente e enxergar o quanto ela é musculosa".
Foto: Bruno Alencastro / Agencia
RBS
Sou
devoto dos cachorros mancos. Aquele cachorro com uma perna imaginária, apoiando-se
no vento. Admiro imensamente o vira-lata que, apesar de quebrado, percorre seu
trajeto com o focinho erguido. Que altivez! Que elegância vinda do desespero!
Irei
segui-lo na rua para descobrir o que come e onde mora. Posso entornar as latas
de lixo para me tornar igual. Posso errar o caminho do trabalho e respirar
Porto Alegre atrás de seu vulto. Fico curioso e assombrado pela força
sobrenatural que emana de seu andar.
Ele
perdeu a pata, mas não a estrada. Ele perdeu a pata, mas não a vontade. Ele
perdeu a pata, mas não a esperança. Ele perdeu a pata, mas não perdeu a lembrança
de caminhar.
Não
tenho pena dele, nem cometo o desatino de me comparar. O cão manco é um homem
inteiro.
Passeia
por mim e não pede desculpa. Não menosprezo sua convicção: o cachorro manco
também corre. O cachorro manco talvez voe. O cachorro manco esquece que tem chão.
Sua esperança é uma centopeia apressada.
Ele
não se entregou ao encolhimento, continua se arriscando no trânsito pela
compreensão. Aceitou apenas que a vida não é perfeita e ninguém é capaz de
controlá-la. Os homens com vergonha de amar deveriam adotar um cachorro manco e
contemplar o esforço da ausência. Segurar a patinha inexistente e enxergar o
quanto ela é musculosa.
Olhar
com calma o pelo que renasceu depois dos maus-tratos e do sol em demasia. Encarar
os olhos carentes desprovidos de cílios, nada separando a realidade do fundo
das pupilas.
Sua
aparição transforma nosso jeito de desejar o mundo. É só pegar o animal no colo
que paramos de reclamar dos pequenos aborrecimentos. Desistimos do orgulho. Nasce
uma suave fé da carícia.
Porque
o cão manco confia antes de conhecer. Faz festa mesmo sem ser convidado. No
amparo estranho, abanará o rabo e tremerá de contentamento. Ele sofreu e não se
tornou arredio. Sofreu e não deixou de oferecer o coto.
Um cão
manco é uma passagem para a infância – ele lambe o rosto para lavar pudores e
ressentimentos. Aceita um prato de comida como se fosse o seu próprio aniversário.
Harmonioso na falta, nos diz que não dependemos de equilíbrio, e sim de um
lugar para ir.
O cão
manco é meu professor de transcendência. Me explicou que eu não posso amar por
dois, posso amar por três, quatro, cinco, o que precisar para retribuir a
ternura de outro amor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário