31
de agosto de 2014 | N° 17908
L.
F. VERISSIMO
Álgebra e
fogo
Na
recente comemoração do centenário de nascimento do Julio Cortázar, escreveu-se
muito sobre metalinguagem, que ele usou em alguns dos seus textos mais
conhecidos, como O Jogo da Amarelinha, que eram para ser lidos como jogos de
armar. Cortázar seria um pioneiro do pós-modernismo, definido como uma
literatura autoconsciente ao extremo, uma literatura com os andaimes à mostra,
que convida o leitor a ser cúmplice dos seus artifícios.
Italo
Calvino descreveu o pós-modernismo como “a tendência de usar, ironicamente,
imagens padronizadas da cultura de massa, ou injetar o fascínio herdado da
tradição literária numa narrativa que acentua o seu artificialismo”. Segundo
essa definição, o pós-moderno é a continuação do moderno como paródia, jogo ou
desmistificação.
Mas
você pode, com alguma boa vontade, identificar o início do pós-moderno no
pré-moderno, ou no próprio nascimento da tradição literária de que fala
Calvino: o Dom Quixote, de Cervantes, que já era na sua origem, no começo do
século 17, uma literatura autoconsciente e parodística.
A
segunda parte de Dom Quixote acontece num mundo em que já aconteceu a primeira
parte, e o Quixote e suas aventuras malucas são conhecidas. Cervantes incorpora
sua fantasia e seu personagem fictício à realidade do dia, confiando na
indulgência do leitor com o truque – e pode dizer, antes de todos os
pós-modernistas que virão: “Primeirão!”.
O
livro mais revolucionário da história da Literatura, o Jogo da Amarelinha do
seu tempo, se chama A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, do
irlandês Laurence Sterne. Foi publicado em nove volumes – começando em 1760! É
a história, contada na primeira pessoa, de um personagem rocambolesco,
Tristram, que recorre a todas as convenções literárias da época, fazendo pouco
delas, para narrar sua vida, e quando as convenções e as palavras não bastam,
recorre a grafismos (como o desenho no meio do texto de uma linha em espiral
para descrever o movimento de uma bengala no ar) que devem ter sido um desafio
para os tipógrafos de então. Sterne foi outro pós-moderno antes do moderno.
O
americano John Barth, este um pós-moderno de hoje, escreveu sobre dois
pós-modernos contemporâneos que admira, Calvino e Jorge Luis Borges, e tomou
emprestada de Borges uma definição de dois valores que, combinados, descrevem a
arte da dupla, Álgebra e Fogo. Álgebra significando a engenhosidade formal de
uma obra, o truque que surpreende ou desafia o leitor, e fogo o que o comove.
Álgebra
sem fogo acaba em malabarismo técnico sem alma, fogo sem álgebra acaba em
literatura enjoativa, porque alma demais também enjoa. Para Barth, Calvino e
Borges são os dois grandes escritores do nosso tempo porque, na sua ficção,
atingiram como ninguém mais a fusão de álgebra e fogo. Barth descreve o que
eles fazem – ou fizeram, pois já se foram – como “virtuosismo passional”.
Perfeito.
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