10
de agosto de 2014 | N° 17886
FABRÍCIO
CARPINEJAR
O colo da letra
Na
infância, desprezava a assinatura.
A
vida vinha anônima, abundante. Não precisava ser alguém para ser feliz. Nem
colocava autoria no desenho, em nenhum lugar. Aquilo que era mundo era meu.
Mas,
aos 12 anos, minha mãe chegou com a tarefa que estragou o paraíso da
impunidade.
–
Treina sua assinatura que amanhã faremos sua carteira de identidade. – Como
assim?
–
Deve assinar seu nome e depois não pode mais mudar.
Minha
história pode ser dividida antes do RG e depois do RG. É como se fosse vítima
de abrupta redução da maioridade penal.
A
missão me paralisou. Como assinar e não mais mudar? Como oferecer uma forma
para sempre?
Foi
uma condenação assustadora. Eu me vi preenchendo cadernos de caligrafias
diariamente até os 80 anos.
De
uma hora para outra, restava-me criar uma personalidade. Um risco autoral.
Assumir uma responsabilidade infinita.
Nem
tinha noção por onde começar.
Lembrei
da profissão de meu pai – escritor – e que ele autografava seus livros para os
leitores. Tinha traquejo, experiência, jorrava seu nome com extrema facilidade
e sem variação.
Tomei
sua assinatura emendada e passei a imitar com o apoio de um papel vegetal.
A
grafia paterna se movimentava como um desenho. Um ideograma.
Seu
“c” era uma pista de skate. Seu “a” era igual ao “o”, só que vinha na
contramão, da direita para esquerda. Seu “l” era uma árvore desfolhada. Seu “j”
levantava um sol no acento. E o “r” se derramava como um escorregador.
Já
não se assemelhava a uma assinatura, mas ao Parque Marinha do Brasil.
Por
um breve momento, eu esqueci a tarefa e me divertia na praça de suas letras.
Ficava na fila indiana com os colegas para descer nos brinquedos.
Inventava
cenas e diálogos em meio ao sol da página em branco. Meu pai me empurrava no
balanço. Meu pai disputava corrida da escada à lixeira laranja. Meu pai cuidava
de mim com sua boina, seu casaco de couro e sua gargalhada alta e amiga.
Descobri
que letra é feita para sonhar. Assim que criei minha assinatura. Espantada.
Grande. Estranha. Absoluto espelho do meu pai.
Exercitei
ao longo da madrugada meu nome como se fosse uma continuação do nome do meu
pai. Uma extensão de nossas pernas caminhando juntos. Inventei uma centopeia de
tinta – minhas botas ortopédicas prosseguindo seus sapatos pretos de bico fino.
Não
há nada mais íntimo do que ser um copista e segurar – com a imaginação – a mão
de quem a gente admira. Ao
falsificar seu traço, me tornei verdadeiro. Ao assinar, dou a mão ao meu pai.
Quando
autografo minhas obras, a assinatura do meu pai está por baixo. É a minha
sombra. É o meu apoio. É o meu fundo. Ele
vive me oferecendo colo por toda a eternidade das palavras.
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