10
de agosto de 2014 | N° 17886
PAULO
GLEICH
O menino e o tigre: quem é
responsável?
Ainda reverbera no país o caso do menino que teve o
braço mutilado por um tigre no zoológico de Cascavel. Além do espanto ante o
horror, o que tem alimentado as discussões é a busca pelo responsável pelo
acontecido. Acusa-se o zoológico, por não oferecer segurança suficiente; o
garoto, por ter saltado a cerca; os visitantes que testemunharam a cena e não
intervieram. Quase sobrou para o tigre, que agiu por instinto. Mas o principal
acusado, no vox populi, é o pai, que presenciou a cena e nada fez.
Uma
entrevista com o pai no Fantástico do domingo passado alimentou a onda de
indignação e ódio contra ele, que disse que “vacilou”, que o deixou brincando
ali porque estava empolgado, se divertindo. Do ponto de vista legal há poucas
dúvidas: pais são responsáveis por seus filhos até que estes atinjam a
maioridade. Permitir que um filho se exponha a uma situação de perigo sob seu
olhar constitui negligência, possivelmente o pai deverá ser responsabilizado.
Mas
cabe também pensar na responsabilidade para além do aspecto jurídico. A
exposição do pequeno aos animais foi testemunhada por outros visitantes do
zoológico, que assistiram sua “brincadeira” com o leão e o tigre, até a
registraram em vídeo. Houve quem o alertasse do perigo, mas as palavras não
tiveram efeito algum sobre ele, que seguiu brincando com os animais, nem sobre
o pai, cujas razões para não intervir desconhecemos. O fato é que ninguém
interveio, saltando a grade e retirando o menino de lá, antes da tragédia.
Num
ensaio inédito em português (Attaboy), o escritor David Sedaris narra uma cena
na qual um cidadão segura um garoto para impedi-lo de seguir pichando uma caixa
de correio. Informados por ele do que o filho fazia, os pais reagem indignados:
“Quem lhe deu o direito de tocar no nosso filho?”. A cena retrata uma realidade
contemporânea: muitos filhos são tratados como propriedade privada, apenas os
pais se veem no direito de intervir em sua educação. Intrometer-se é tomado como
transgressão, invasão de privacidade – mesmo em situações que tangem ao
coletivo.
A
função dos pais é introduzir os filhos na cultura a que pertencem. Cabe-lhes a
tarefa de transmitir os códigos que regem a vida humana de sua época e lugar:
conhecimentos, valores, deveres e proibições, a relação com o outro. À medida
que a criança cresce e sai de casa, essa função se estende a professores e
outros adultos com quem convive. Mas muitos pais não têm permitido o
compartilhamento dessa função, como podem atestar muitos professores que são
constrangidos quando repreendem alunos. Se isso ocorre com educadores, em
teoria autorizados para isso, que dirá um estranho?
O
incidente no zoológico é revelador de como temos operado na coletividade.
Assistimos, podemos até nos espantar ou indignar, mas algo nos paralisa para
agir, como se aquilo não nos dissesse respeito ou não tivéssemos o direito. Num
laço social infantilizado e individualista, a cada um é responsável apenas por
seu quinhão (e olhe lá), o que é do coletivo é delegado ao poder público, esse
pai sempre insuficiente que não dá conta de manter a casa em ordem e os filhos
obedientes.
A
queixa de que não havia funcionários do zoológico para impedir o menino reflete
isso: sem uma autoridade para fazer valer a lei, ela não precisa ser
respeitada. Sob esse ponto de vista, o pai do menino e os presentes fizeram sua
função: transmitiram, com sua omissão, uma faceta da cultura. Isso custou ao
garoto o braço, mas como corpo coletivo todos nós saímos perdendo.
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