sábado, 9 de agosto de 2014


10 de agosto de 2014 | N° 17886
PAULO GLEICH

O menino e o tigre: quem é responsável?

Ainda reverbera no país o caso do menino que teve o braço mutilado por um tigre no zoológico de Cascavel. Além do espanto ante o horror, o que tem alimentado as discussões é a busca pelo responsável pelo acontecido. Acusa-se o zoológico, por não oferecer segurança suficiente; o garoto, por ter saltado a cerca; os visitantes que testemunharam a cena e não intervieram. Quase sobrou para o tigre, que agiu por instinto. Mas o principal acusado, no vox populi, é o pai, que presenciou a cena e nada fez.

Uma entrevista com o pai no Fantástico do domingo passado alimentou a onda de indignação e ódio contra ele, que disse que “vacilou”, que o deixou brincando ali porque estava empolgado, se divertindo. Do ponto de vista legal há poucas dúvidas: pais são responsáveis por seus filhos até que estes atinjam a maioridade. Permitir que um filho se exponha a uma situação de perigo sob seu olhar constitui negligência, possivelmente o pai deverá ser responsabilizado.

Mas cabe também pensar na responsabilidade para além do aspecto jurídico. A exposição do pequeno aos animais foi testemunhada por outros visitantes do zoológico, que assistiram sua “brincadeira” com o leão e o tigre, até a registraram em vídeo. Houve quem o alertasse do perigo, mas as palavras não tiveram efeito algum sobre ele, que seguiu brincando com os animais, nem sobre o pai, cujas razões para não intervir desconhecemos. O fato é que ninguém interveio, saltando a grade e retirando o menino de lá, antes da tragédia.

Num ensaio inédito em português (Attaboy), o escritor David Sedaris narra uma cena na qual um cidadão segura um garoto para impedi-lo de seguir pichando uma caixa de correio. Informados por ele do que o filho fazia, os pais reagem indignados: “Quem lhe deu o direito de tocar no nosso filho?”. A cena retrata uma realidade contemporânea: muitos filhos são tratados como propriedade privada, apenas os pais se veem no direito de intervir em sua educação. Intrometer-se é tomado como transgressão, invasão de privacidade – mesmo em situações que tangem ao coletivo.

A função dos pais é introduzir os filhos na cultura a que pertencem. Cabe-lhes a tarefa de transmitir os códigos que regem a vida humana de sua época e lugar: conhecimentos, valores, deveres e proibições, a relação com o outro. À medida que a criança cresce e sai de casa, essa função se estende a professores e outros adultos com quem convive. Mas muitos pais não têm permitido o compartilhamento dessa função, como podem atestar muitos professores que são constrangidos quando repreendem alunos. Se isso ocorre com educadores, em teoria autorizados para isso, que dirá um estranho?

O incidente no zoológico é revelador de como temos operado na coletividade. Assistimos, podemos até nos espantar ou indignar, mas algo nos paralisa para agir, como se aquilo não nos dissesse respeito ou não tivéssemos o direito. Num laço social infantilizado e individualista, a cada um é responsável apenas por seu quinhão (e olhe lá), o que é do coletivo é delegado ao poder público, esse pai sempre insuficiente que não dá conta de manter a casa em ordem e os filhos obedientes.


A queixa de que não havia funcionários do zoológico para impedir o menino reflete isso: sem uma autoridade para fazer valer a lei, ela não precisa ser respeitada. Sob esse ponto de vista, o pai do menino e os presentes fizeram sua função: transmitiram, com sua omissão, uma faceta da cultura. Isso custou ao garoto o braço, mas como corpo coletivo todos nós saímos perdendo.

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