sábado, 30 de agosto de 2014


31 de agosto de 2014 | N° 17908
ANTONIO PRATA

Dupla personalidade

Eu descobri, doutor, eu entendi finalmente por que que os meus namoros não dão certo, o problema... O problema é que eu e o meu pinto não temos a mesma formação. Não, muito pelo contrário, são duas visões de mundo radicalmente diferentes. Eu sou professor universitário, sou fã do Truffaut, eu voto no PSOL, já o meu pinto... Ele gosta de umas mulheres de argolão dourado, salto alto e muito perfume. Umas mulheres que eu não consigo aguentar por três meses e que me acham um mala, também. Eu sou de esquerda, doutor, mas o meu pinto é de direita.

É como se, tipo, todo dia, durante a infância e a adolescência, antes de eu pegar a perua e ir pra Waldorf, a escola antroposófica que eu estudei, meu pinto tivesse sido desatarraxado de mim, tivesse entrado em outra perua escolar, tipo uma peruazinha de controle remoto, só pra pintos, e ido estudar no Dante, no Bandeirantes ou, sei lá, no Santo Américo. Só pode ser, doutor. Senão, como é que explica?

Pra você ver como a gente é diferente: um dia, se eu tiver uma filha, eu quero que ela chame Luiza, em homenagem ao Tom. Mas as mulheres que o meu pinto escolhe são todas Waleskas ou Jéssicas ou Tábathas, dessas com agá no segundo T. É no segundo T, o agá de Tábatha? Ou é no primeiro? Não sei. O meu pinto sabe, com certeza, mas adianta perguntar pra ele? Ele não me ouve. Quantas vezes eu já não apresentei mulheres pra ele, mulheres bacanas, eu disse, amigão, essa é pra casar, pra ter uma filha chamada Luiza, pra comprar o pacote completo da Mostra e ir até na animação muda do Uzbequistão, domingo de manhã, mas ele se finge de morto, nem tchuns. Aí eu vou no shopping trocar um presente que eu ganhei de aniversário, chega a vendedora de unha vermelha, rabão de cavalo loiro, diz, “bom dia, eu sou a Kátia, posso tá te ajudando?” e pronto, ele parece um cachorrinho quando os donos voltam de viagem.


Eu tava pensando: e se a gente tentasse uma terapia de grupo, eu e ele? Ou melhor, uma terapia familiar. É, porque às vezes eu acho que esse negócio de ele querer me contradizer em tudo é uma fase de negação, tipo um complexo de Édipo, se a gente pensar que eu sou o pai do meu pinto e que, tipo, ele precisa me matar pra achar a individualidade dele. Será que é isso? Não, não pode ser fase: eu tô com trinta e cinco e ele é assim desde a adolescência, não vai mudar.

Quem eu tô querendo enganar, doutor? O erro foi meu, claro. Fui eu que eduquei o meu pinto e eu sei o que ele leu na juventude. Leu Playboy e Sexy e Penthouse. E como eram as mulheres na Playboy, na Sexy e na Penthouse? Tinham cara de quem quer ter uma filha chamada Luiza em homenagem ao Tom e ir na Mostra ver animação muda do Uzbequistão? Não, eram todas loiras platinadas, com unha vermelha e rabão de cavalo, tinham cara é de quem quer ir pra Vegas andar de conversível vermelho. Vegas, doutor! Conversível! Eu voto no PSOL!

Todo dia eu vou pra faculdade pela ciclovia e todo dia o meu pinto quase me faz cair da bicicleta, porque ele tira a minha atenção do caminho e me obriga a olhar as mulheres dentro dos SUVs, na rua. Aquelas mulheres pequenininhas dentro daqueles carrões enormes, tem alguma coisa ali... Ele pira.


É grave, doutor?

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