quinta-feira, 28 de agosto de 2014


28 de agosto de 2014 | N° 17905
CARLOS GERBASE

SAPATOS E LIVROS

Uma mulher comprando sapatos é um espetáculo. O corpo movimenta-se suavemente entre as vitrines. O cartão de crédito pulsa e arfa na escuridão da bolsa, ansioso para cumprir sua função existencial. O sapato é o supremo desejo da mulher. Não de todas, é claro. Só 99% delas. As outras estão escolhendo meias longas pra combinar, e só então alcançam o clímax. Imelda Marcos, primeira-dama das Filipinas, famosa por possuir 3 mil pares de sapatos enquanto o povo passava fome, nunca foi um monstro. Ela apenas deixou a natureza se manifestar, com apoio cultural do seu cartão de crédito.

As mulheres sabem o poder que o sapato certo, a meia certa e a perna certa exercem sobre os homens. Helmut Newton, meu fotógrafo preferido, ainda bem jovem rendeu-se ao poder do stiletto, o scarpin perfeito, e viveu à procura de uma modelo que merecesse calçá-lo. E o melhor de tudo: não precisava ficar esperando a modelo escolher os sapatos na loja. Eles vinham direto para o estúdio, junto com as pernas certas e as meias certas. Não sou um fetichista tão feliz. Eu levo um livro, um jornal ou uma revista para a loja e fico esperando, sentado no meio daquele monte de caixas de papelão.

Livros não são sapatos. Eles funcionam nas mãos, e não nos pés. Eles não precisam ser novos. Pelo contrário. Um livro usado, quem sabe até bem antigo, tem um charme todo especial. Livros podem ser até mais sensuais que sapatos, desde que estejam na mão da mulher certa. Se ela estiver de óculos, então... Mulheres de óculos, meias de seda e saltos altos lendo a Odisseia são o ponto mais alto da evolução humana. Helmut Newton fotografou várias para a Vogue.


Na interminável polêmica sobre o que é mais importante na construção da essência do ser humano – a natureza ou a cultura – Helmut Newton prova que essas duas forças se complementam. Um pé feminino nu já é um espetáculo grandioso. Mas, se for parcialmente escondido e elevado pelo sapato certo, transcenderá sua mera existência física. Ao mesmo tempo, um sapato sem ossos, carne, pele e sangue quente em seu interior é tão inútil quanto um livro sem leitores. Sapatos de salto alto e livros são o que nos separa dos outros animais.

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